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O prazer de correr na via pública

 

Embora me aflija um bom bocado, que haja três ou trezentos canais privados apenas os posso recriminar se forem fomentadores de isto ou de aquilo que vá contra as regras elementares da ética, da decência e da boa educação.

 

Mas, porque pago para ver e porque me dói no bolso, importo-me bem que haja, não interessa se um, dois ou mais canais públicos de TV geridos por uma espécie de criadores de gado que alimentam as suas rezes com farinhas carregadas de potentes hormonas para desenvolvimento rápido da estupidez e lhes dá palha, seca e oca, recheada com imbecilidades, de difícil digestão, mesmo para gente com estômago muito forte como, até hoje, tem sido o meu.

 

Para além de não terem dinheiro para as farinhas nem para os demais suplementos alimentares estupidificantes, vivem de opíparas e garantidas esmolas e tentam insidiosamente, para que a digestão a todos se torne fácil, com anestesia permanente e progressiva, implantar fortes estômagos no espaço deixado vazio nos crânios a que, prévia e sub-repticiamente, retiraram o cérebro.

 

As rezes descerebradas devoram avidamente tudo o que lhes servem e cada vez menos pensam no pão, para cada vez mais desejarem o circo. Novelas encadeadas, entremeadas com concursos asininos e fartotes de futebol jogado e falado, são os pratos fortes deste faustoso banquete, onde empregados de libré, camisa engomada e laço preto, alguns pagos a peso de ouro, servem comida tipo farta brutos própria para gente que não lava as mãos e lambe os dois lados da faca.   

 

 Cumprissem eles, públicos ou privados, as regras elementares da ética e da decência e entrariam, com muito prazer meu, em minha casa pela porta da frente, que para todos está (irremediavelmente), sempre entreaberta. Mas não cumprem e entram sem sequer limpar os pés, cuspindo no chão e apagando na sola do sapato as beatas que atiram, esganadas e retorcidas, para debaixo do sofá.

 

A televisão pública, (esqueçamos a privada), que uma onda de patriotismo “túguico” veio para a rua defender, aquela que eu também pago, esbanja, sem regras nem pudor, alegremente e até ao desvario, o dinheiro de quase todos e algum do meu. A ela, para mais por a tal ter direito, gostaria eu de poder confiadamente escancarar a porta e receber de braços abertos. 

 

 Não sei, com rigor nem até à exaustão, tudo o que ela pode e deve ser, mas posso citar muitas coisas elementares que não deve nem eu admito que, em minha casa, lhe seja permitido fazer.

 

 Não deve incitar à violência, não deve fomentar a imbecilidade, não deve patrocinar a estupidez, não deve disseminar a asneira, não deve propagar a ignorância, não deve atear incêndios em consciências tranquilas, não deve brincar com a miséria dos outros, não deve ocultar nem distorcer verdades incómodas, não deve difamar, não deve promover o ódio. Não deve gastar mais do que o que tem e deve gastá-lo bem. Não deve, acima de tudo, abusar da minha hospitalidade e vir malcriadamente perturbar o meu serão.

 

Eu sei. Eu sei que estão a perguntar: “por que é que este tipo não desliga e, se sabe ler, por que não folheia uma revista ou acaba de ler o livro, enquanto come bolachas com pedacinhos de queijo?” Ou, então, interrogam: “gordo como está a ficar, por que não vai ele dar uma corrida à volta do quarteirão, que lhe ia fazer tão bem?”

 

Ah! Como eu gostaria de ao menos isto poder fazer! Conseguisse eu levar, ao meu lado, pelas ruas do meu bairro, com janelas de persianas mal corridas onde se vêem tremular luzes coloridas e se ouvem conhecidas vozes, uma lancheira cheia de queijo aos cubinhos e montes de bolachas estaladiças, tendo sempre, dois passos à minha frente, voltada para mim e a correr de costas, uma televisão portátil a pilhas.

 

 

 

 

***

     a reorganização da RTP e a defesa de interesses muito bem instalados.

 

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