top of page

À mesa

 

Estejamos descansados porque, para os nossos arqueados políticos, os problemas à espera de uma resolução já estão todos em cima da mesa para, por uma só vez, serem definitivamente resolvidos.   

 

O tão perturbado, amachucado, esmagado e já mais que mastigado cidadão de Lineu, na sua já de mui longes tempos arreigada ignorância, sabe, pelo que por aí vai ouvindo rumorejar, que na nossa longínqua capital onde se choram copiosamente os patrimoniais fados da humanidade, algures lá por essas Lisboas, deve haver uma mesa que, no seu parco mas sábio entender, deve ser enorme para nela caber tudo o que nela em cima vai caindo.  

 

Em breve, vão ficar resolvidos os problemas daquele seu dia-a-dia em que cada nova noite se antecipa e começa antes da outra ter acabado. 

   

Esse vulgar cidadão ignora, porque deliberadamente sempre quiseram que ele tudo ignorasse e vivesse na escuridão, que a rapidez das decisões que lhe poderiam aliviar um pouco a carga desse noite-a-noite em que vai subvivendo, varia na razão inversa do insaciável apetite da maioria dos comensais que se sentam à volta dessa tal mesa, tendo sempre à sua frente não mais que uma modesta garrafa de água natural sem ponta de gás. De vez em quando, levantam-se uns para esticar as pernas, outros para alisar o avental, outros para soprar segredinhos ou larachas de caverna e ainda outros porque já lhes começava a doer o fundo.  

 

Por cansaço, já deixei de me interessar por saber o que se vem amontoando em cima dessa tão famosa mesa, mas ainda lá consigo ver pilhas e pilhas de processos amarelecidos pelos tempos, cheios de ressalvas e mais ressalvas no fim, todos eximiamente escritos à mão, por alguém que, de manguitos e talvez de monóculo, usava uma caneta de bico rachado ao meio por onde, ligeira, outrora passou a tinta e também alguns traiçoeiros borrões.

 

A maioria dos processos, agora escritos em qualquer corriqueiro computador ou esbelta tablete, acabam por ser fortemente comprimidos dentro duma pasta de arquivo atada com um cordel de sisal, muito peludo e bruto, onde é feito um intrincado nó que ninguém mais vai conseguir, nem muito menos querer, desatar. Assunto encerrado!

 

Eu e outros também lineanos asnos como eu sabemos bem que é em baixo e não em cima dessa tão famigerada mesa que está o que, antes de tudo, interessaria cuidadosamente esmiuçar e sabiamente atacar.

 

É lá por baixo que, tudo muito bem oculto pelo denso e opaco tampo, se passam papelinhos secretos e se enrolam verdadeiras espirais possessivas por que tanto lutam os famintos comensais, donos das várias pernas ocultas pelo tampo, confundidas e entrelaçadas com as da muito bem trabalhada mesa onde tanta coisa em cima cai e donde, ainda que mesmo muito bem "alavancada", muito pouca acaba por sair.   

 

 

 

 

***

Sentados às suas próprias mesas, onde se vão democraticamente anediando, estão não só os políticos de carreira como os neopolitiqueiros ex-cola-cartazes, os jornalistas de cordel, os colunistas, os equilibristas, os politólogos, os sociólogos, os futurólogos, se calhar os astrólogos, pela certa, os videntes, os comentadores da geral e outros palradores de feira que, ao longo do tempo, vão introduzindo novas palavras, siglas e expressões no nosso (deles) vocabulário.

Algumas delas por cá vão ficando, outras, sorrateiramente, lá vão desaparecendo e grande parte não passou de fogachos que cedo abortaram sem nunca terem alcançado o excelso mérito de entrar no tão ansiado e propalado novo acordo ortográfico.    

 

Dou alguns exemplos soltos, todos eles piramidais:

 

incontornável, redutor, recorrente, fracturante, abrangente, alavancar, arco do poder, espiral recessiva, crescimento negativo, politicamente correcto, as PPP, o BPN, o BPP, o Banif, o TGV, as SCUT, o Alcochete Jamé, a OTA que sempre foi mas já não é, e muitos, muitos outros que, através de audaciosas engenharias financeiras, acabam sempre , no meio de silêncios ensurdecedores, por cair na impagável conta do calejado cidadão que, cada dia mais desconfiado e apesar de saber o seu NIF de cor, teima em não pedir factura.

 

***

Lá  no cimo de tudo, arqueados quer dizer que pertencem ao arco do poder.

Nada tem a ver com corcundas nem com  o meu saudoso jogo do arco. Perceberam?

bottom of page