top of page

20,00 valores

 

Qualquer pessoa sadia da mente e não iletrada total, num país que detesta a matemática, que usa a calculadora para somar 1+1, que volta a usá-la para saber quantos são 2-1, que julga que a raiz quadrada é um fenómeno das férteis terras do Entroncamento, que a potência de um número marca a sua virilidade, em suma, qualquer pessoa com o caco um nadinha trabalhado não entende ser possível que haja fornadas anuais de milhares de jovens com classificações a rondar os 20 valores, para poderem entrar, em geral, extremamente vocacionados, no curso de medicina.


Ou então, para que um pouco se possa perceber, este valor limite não tem o significado que se estabeleceu deveria ter! Claro que não tem e, muito mais grave, todos, de ponta a ponta, sabem bem que não.


Qualquer professor do ensino secundário não pode ignorar que o jogo está descaradamente viciado. Não saberão todos eles, por exemplo, que, para não se incomodarem, há colegas seus que correm tudo a dezanoves e vintes? E que há dedicados pais e dilectos filhos que insultam, ameaçam e até chegam a agredir o rigoroso e desumano docente, quando, este, ao menino que precisava dum mísero dezanove, só deu dezoito, inibindo-o de entrar onde ele queria, para ser mais um entre os demais? E que lhe cascam, impunemente, se as suas exigências não forem atendidas? Livra!


Afinal quem é que não sabe disto ou anda a fingir que esta coisa se passa do lado oculto da Lua, como se à volta desta não andassem sempre curiosas sondas a devassar-lhe toda a privacidade, mostrando-a, de frente e de costas, a corpo inteiro?


Não se terão perdido, continuando com o exemplo mais gritante que é o da medicina, bons médicos que, só por uma centésima, foram cair noutra profissão de que não gostam, só para não perderem tudo e serem doutores incompetentes noutra coisa qualquer?


Que instrumento tão preciso permite avaliar o saber até às centésimas, (um dia, vão ver, lá iremos às milésimas), para que, com tão rigorosos valores e apertada tolerância, se vá decidir o futuro dos jovens e afectar o problema, nada fácil e cada vez mais intrincado de solucionar, da saúde?


Alguém, timidamente, já pensou em descer a fasquia do saber, para que pudesse entrar mais gente e evitar mais uma temível invasão das hostes espanholas, com um exército branco de médicos, na sua terra desempregados. Usando a lógica mais elementar, poderíamos concluir que a qualidade dos serviços de saúde ainda mais se ia afundar, com alunos broncos a entrarem na Faculdade com médias miseráveis de 17,72 e, até, escândalo dos escândalos, de 17,71!


Anuncia-se agora que para o próximo ano lectivo, 2003/2004, vão poder entrar mais trezentos candidatos no ensino público e a intenção de autorizar a criação dos primeiros cursos privados de medicina. De imediato, alguns dos cérebros que já entraram e tem assento garantido não gostaram de este entreabrir de portas à concorrência e vieram com argumentos andrajosos em defesa dos seus decimais privilégios.


Portuguesas e portugueses, enquanto isto não vai nem vem, permitam-me um conselho: agasalhem-se, fujam das correntes de ar, não apanhem muito sol, especialmente na cabeça, e façam um pequeno esforço para não adoecerem nos anos mais próximos. Mas se, por infortúnio vosso, tiverem entretanto mesmo que ir a correr ao médico, percam um bocadinho de tempo, e antes de dizerem ao que vêm e de lhe mostrarem educadamente a língua, exijam primeiro que ele vos apresente a papelada onde estão todas as notinhas que teve no Secundário até poder entrar na Faculdade.


Se ele alguma vez, no seu longo currículo, tiver tido menos que 10,03 ou, vá lá, 10,02 a português e menos que 0,24 ou, também vá lá, 0,23 a matemática, aguentem mais um bocadinho a enxaqueca e procurem outro que mostre, em papel muito bem timbrado, estas duas modestas garantias.


Eu, desde há uns anos, que faço assim e lá me venho aguentando.


***  O Ensino está assim, com uma forte tendência para piorar.

 

bottom of page