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A aragem na carruagem

 

Metam-se, de vez em quando, os nossos governantes à estrada, por ela rolando atentos e destemidos, no dia da sua reunião semanal. Percorram essas aventurosas vias, que ligam entre si tantas definhadas terras. Apalpem suavemente o país doente e, com o martelinho no joelho, apreciem os seus ténues reflexos residuais.

 

 Não entrem nas cidades, nas vilas nem nas aldeias. Não percorram as avenidas, as ruas, os becos e as vielas que as retalham. Pensando no que vai na vossa própria terra, basta que imaginem, de longe, o que por lá vai. As mesmas casas, os mesmos carros, os mesmos monstros, os mesmos crimes. Apenas outras caras de gentes conformadamente iguais. Acabem com as faustosas solenidades abertas que nunca a nada levaram. O calado é o melhor e o diálogo já cansa. Não há tempo a perder.

 

Nunca anunciem as vossas digressões para que os autóctones, na véspera e à pressa, limpem as ruas, pintem as fachadas, vasculhem as gavetas onde guardam cansados discursos de circunstância, escondam lá longe os putrefactos lixos e vos ofereçam anestesiantes almoços, com muitas palmas no meio da lagosta e ainda mais vibrantes aplausos no fim da garrafa.

 

Enfiem-se num autocarro com janelas de vidros rasgados e, condição essencial, bem limpa, para que nada escape a olho atenta de ministro e secretário de Estado. Levem sandes e sumo de pêssego ou laranja. Sejam frugais.

 

Como condição, escolham para esse safari um veículo importado em segunda mão, lúcido mas já cansado por anos de vida serena rolada na sua terra natal, algures na Europa do centro. Teve azar o pobre no local que lhe destinaram para se desfazer nos seus últimos quilómetros. Depressa cá se envelheceu e tem agora os amortecedores fanados, as molas pasmadas, os bancos duramente calejados e suavemente ensebados. O motor arfa agora barulhento e borrifa com os seus fumos negros os passantes que fogem do autocarro tal como este tenta fugir das covas sem cair nas bermas.

 

 O veículo segue muito abaixo da velocidade legalmente permitida, não apenas por precaução, não porque para mais unhas não tem mas, essencialmente, para que pitada não se perca.

 

Do vosso incómodo mas sobranceiro logradouro avaliem, à transparência dos vidros, as carências evidentes do povo, as razões profundas do seu ainda mais profundo atraso, os motivos das suas insatisfações, a origem remota dos seus problemas, a justificação da sua vida arrastada, o motivo dum acomodado horizonte sem esperança.

 

Aproveitem para apreciar as paisagens ainda não emporcalhadas, admirem os condutores audaciosos que, com intolerância zero, aos esses e erres, muito zangados com a vossa lentidão, vos vão ultrapassando, gesticulando insultos e mirando-vos com olhos severos pelo seu espelho retrovisor.

 

 Reparem bem nos sinais de trânsito e nas marcas no pavimento que lá estão e, especialmente, tomem nota dos que lá deviam estar. Sintam o trepidar “parkinsoniano” do autocarro e o seu catapultar circense quando cai nas profundas covas traiçoeiramente agachadas ou, quando muito, assinaladas com um ainda mais traiçoeiro bidão enegrecido postado a seu lado, armado em sentinela, certamente a soldo do inimigo.

 

Não é preciso nem recomendável parar. Se tal fisiologicamente for imperioso, (não há casas de banho a não ser nos cafés de estrada, que assim lá vão amparando a loja), mandem encostar numa berma arborizada, aparentemente acolhedora, e reparem na lixeira que por lá vai.

 

Estiquem as pernas mas não muito para não calcarem o indesejável nem se cortarem no vidro duma garrafa partida ou na chapa de uma lata corroída. Aliviados, façam favor de voltar aos seus lugares, mas, por respeito dos outros que a seguir lá vão sujar, façam o favor de deixar o local, pelo menos, como o encontraram.

 

Prossigam a viajem. Não se enervem com os que se vos atravessam no caminho. Mantenham a esperada postura ministerial. Como até aqui, é só necessário estar atento e ver, com olhos de ver, o que aí vem e o que por aí vai. Levem os mais avançados meios informáticos e quem os dedilhe com destreza, para encherem cadernos e cadernos com coisas urgentes que há a fazer.  

 

Não devem perder tempo a ouvir as indígenas gentes, pois tudo por elas já foi dito, redito e já cansa suportar o velho cesto de fundo roto onde tanto queixume ciclicamente tem caído.

 

Mas, se querem realmente mudar o rumo e tomar o norte, abram os olhos, tapem os ouvidos e façam qualquer coisa. Não se pode pedir muito, porque muito é demasiado para o tão pouco tempo que, cada vez mais apressado, nos vai escapando. Mas, se algo fizerem, pouco que seja, desta vez façam-no depressa e bem. Prometem?

 

 

 

 

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      Um recado aos nossos ilustres governantes

 

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