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Na Casa da Música

 

Não vim aqui para falar da Música, quero apenas dizer umas coisas sobre alguns cantos da Casa, aquelas que razoavelmente conheço pela minha ida a espectáculos que me têm proporcionado momentos imensamente agradáveis.

 

Mas, como nem só de música vive o homem, também muito me ajuda a estar vivo para ver o que se passa à minha volta, mesmo que nem tudo me seja agradável e pareça estar menos bem.

Da Casa da Música do Porto, venho hoje contar mais o que lá vi do que aquilo que lá fui ouvir.  

Exteriormente, acho o edifício muito bonito, arrojado, e, sem dar ares de novo-riquismo, é original, muito diferente de tudo o que, até hoje, me foi dado ver. Se me perguntarem se já vi coisas mais bonitas, a resposta é pronta e afirmativa: SIM.

 

Gosto sinceramente, mas também há quem não goste sinceramente, daquela espécie de jóia poliédrica de faces todas desiguais e irregulares, obtidas certamente com a ajuda preciosa de um bem elaborado programa de computador que o arquitecto holandês Rem Koolhaas usou para se divertir à grande, com aquele enorme e bem justificado prazer que deve ter quem resolve um difícil “puzzle” por si mesmo criado, em que dia a dia mais se deixa envolver, cada vez mais enredado nas milhentas peças que foi criando.

Goste-se ou não se goste, a Casa da Música não é apenas um monumento que vai ficar para engrandecer o nosso Porto, é também um sinal de esperança e de partida para a abertura de novos rumos que devolvam à velha cidade e às suas gentes a dignidade e o prestígio que merecem e devem muito justamente ter.   

Dito isto, venham daí comigo.

 

Vamos entrar para ver como é a Casa por dentro e, especialmente, observar como é que aquela linda cara do exterior diz com a letra do interior.

 

Subamos corajosamente a minúscula mas bonita escadaria principal, uma espécie de ponte levadiça não elevável, que, nada tem de nobre nem grandioso mas fica muito bem ali. Tem, sensatamente, protecções laterais de vidro  para evitar que alguém, mais incauto ou trôpego, malhe com os ossos, lá em baixo, no também bonito, mas terrivelmente duro pavimento do rés-do-chão, mais conhecido por piso zero. O problema é se alguém, não tendo onde se agarrar, cai de c...ostas se for a subir e de papo se for a descer.

 

Se conseguirmos chegar lá acima, ufa!, ao chamado primeiro piso sem incidentes de qualquer ordem, estamos,  até ver, sãos, mas ainda é muito cedo para dizer que vamos sair salvos.

Como na álgebra, o edifício tem o referido piso zero, que equivale ao rés-do-chão, dois pisos negativos para os automóveis, mais não sei quantos positivos e, às tantas, ainda alguns outros imaginários que se ficaram pelo papel, por falta de verba, ou outra qualquer razão mais ou menos obscura que não me apetece nem me interessa nada espiolhar.

 

Esta é, no meio de muitas outras, mais uma incógnita, a que poderemos, por exemplo, chamar “gama”, ou, se preferirem “teta”, sendo esta uma palavra grave que tanto se pode ler téta, (com o E muito bem aberto) como têta (com o E mais ou menos fechado).

No caso presente, acho que é de lhe chamar têta, pois, em obras desta envergadura, que se arrastam e derrapam muito para além da indecência, há sempre muita gente que gama e/ou muita que mama na têta.

 

Não se deve esquecer que a Casa da Música foi pensada para estar pronta a tempo de se integrar, como era imperioso, no importante evento “Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura”.

Foi inaugurada com pompa e circunstância no dia 15 de Abril de 2005, ainda muito a tempo de se deitarem os mesmos foguetes que tinham sido guardados numa arrecadação e estavam, por sorte, dentro do prazo de validade.  

Como eu disse que não queria espiolhar nada, vamos prosseguir a visita como se nada se tivesse passado.   

As portas de entrada são em vidro bastante espesso, estão escancaradas e levam-nos, de chofre, a um inóspito "hall", (foi daqui, deduzo eu, que veio a palavra hospital), onde estão as bilheteiras, os bengaleiros e outras coisas tão áridas, ou mais, que o aço inoxidável de polimento baço que cobre o pavimento.

Um tapete em borracha sintética às tiras trava e abafa os nossos primeiros passos, assustando-nos de início pela inesperada sensação que temos de ter calcado qualquer coisa mole, felizmente inodora e que não se agarra aos pés, mas que é instável e movediça. Este primeiro impacte provoca um ligeiro enjoo no público adventista, quero eu dizer, na gente que está a entrar, pois se ouvem permanentemente gritinhos abafados dos que, pela primeira vez ali põem o pé.

 

A Patrícia, uma moça muito despachada, que é filha dum jovem e bom amigo meu muito conservador que usa suspensórios de banda larga e, não sei que mania lhe deu, só gosta de andar de Citroën, vai lá frequentemente.  Leve ela o que levar vestido, ligeiro ou de muita cerimónia, vai sempre, mas sempre, de sapatilhas sem atacador. Vamos já ver porquê.

 

Num célebre dia em que lá foi, toda bonita e muito bem afiambrada, de tacão alto muito esguio, a Patrícia enfiou um sapato novinho em folha no referido tapete! O sapato encravou-se  de tal maneira, que ela, em dada altura, não esteve com meias medidas: puxou-o com tanta força que o tacão se separou do resto e ali ficou ele, à entrada, que também é saída, quem sabe se para sempre, muito bem enfiado no fundo do tal tapete, nas tiras de raspagem e amortecimento (ainda lá hei-de ir ver!). Como se não fosse nada com ela,  dirigiu-se para Norte e entrou descalça e em pezinhos de lã na Sala Suggia, com os restos dos sapatos metidos na carteira, que, por acaso, nesse dia, era daquelas muito grandes que levam este mundo e o outro, mais o telemóvel. Mas, de sapatos, nunca mais. Quando muito de sapatilhas, e já é um pau!

 

Sendo a Casa da Música do Porto maioritariamente visitada pelas gentes da cidade que leva o seu nome, muito me espanta que só se ouçam aqueles tais pudicos gritinhos e não, muito alto e com excelente som, expressões directas e claras, muito à flor da fina pele das gentes da vasta região nortenha, embora pouco adequadas a um local daqueles. Por amor de Deus, minha gente, ali não é o nosso querido Bolhão!  

Quase nada há para ver nesse “hall” de entrada, a não ser livrinhos com o programa do dia colocados sobre o enorme balcão corrido que nos separa das bilheteiras e do o bengaleiro. Cá do lado de fora, no inóspito “foyer”, donde apetece fugir a sete ou mais pés, anunciam-se os programas da temporada e muito pouco ou nada mais.

 

O tampo do balcão é igualzinho ao chão que estamos a pisar e, na parte superior é envidraçado, de alto a baixo, na zona das bilheteiras. Quem reparar bem, vê que existe uma fisgazinha inferior, muito juntinha ao tampo, que mal permite o contacto digital dos que estão do lado de cá com os dos que estão do de lá. A acústica no local é óptima, o que é um excelente prenúncio, e não é preciso berrar para que os dois lados se entendam e troquem amáveis sorrisos.

 

Estava para não contar, com receio de, daqui em diante, não mais em mim acreditarem. Mas, acreditem ou não acreditem, tenho mesmo que desabafar.

Por baixo, o balcão é suavemente iluminado, e até não está nada feio para quem tem o mau gosto de gostar daquilo. 

 

Nas paredes dos corredores, na tentativa de quebrar um pouco a frieza do ambiente, e mesmo de lhe dar um pouco de calor, foram utilizadas lâmpadas tubulares fluorescentes de luz gélida, colocadas na vertical, muito mal escondidas por painéis em chapa metálica perfurada de olho muito graúdo. Em certas zonas, algumas destas lâmpadas são suspeitamente avermelhadas. O ambiente de cozinha de bairro social degradado, a cheirar a fritos e a sopa de couves cheia de esturro, foi, voluntária ou involuntariamente, amplamente conseguido.

 

Não posso sequer imaginar que Rem Koolhaas, o talentoso arquitecto que elaborou aquele projecto, tenha metido o dedo nisso. Nem tão-pouco acredito que ele saiba da partida infame que lhe fizeram pelas costas.

 

Com esta e com outras, é difícil suspeitar que é por ali, algures, não se sabe bem onde, mas pelos vistos lá para dentro, que se vai tocar e ouvir música, em princípio, muito bem tocada e também de muito boa qualidade.

 

O chão, propriamente dito, mesmo em dias de caloraça, dá uma enorme sensação de frio porque está completamente nu, sem uma única piedosa peça de roupa a cobri-lo. Mas, apesar de metálico, é silencioso, se não houver senhoras apressadas de tacão fino e alto, não é escorregadio e está sempre muito bem lavado e limpo. Claro que também não vai para ali ninguém de socos emporcalhados, nunca se sabe, era o que faltava!

 

Escorregadio, ou não, a Patrícia, desde aquele susto que apanhou, não só vai sempre de sapatilhas, como vai com estas sem os atacadores, não vá por azar calcá-los e ali se estender bem ao comprido.

Seja como for, que me dá imensa vontade de perguntar, “onde estás tu, oh conforto”, dá, lá isso dá, por mais esmerado que tudo esteja.  

 

As paredes, essas, não fora aquela incrível iluminação que lhes pregaram em cima, estão indecorosamente despidas e, aqui e além, vislumbram-se uns baixo–relevos com informações orientadoras que, ninguém, na primeira ou muitas sessões depois, consegue topar e muito menos decifrar. Claro que, com um repetido e tenaz esforço, a coisa acaba por ir lá, como a mim e a muitos outros aconteceu!

 

Por toda a parte, aparecem vigas em bruto e brutos vãos de escada de baixíssimo pé direito, o que, quanto a mim, deveria obrigar toda agente a levar um capacete que seria deixado, por exemplo, em cabides postos num qualquer vão de escada situado perto da porta da sala onde se vai realizar o espectáculo. É caso para pensarem melhor antes que comece a aparecer gente muito agarrada à cabeça, com esta acabadinha de partir.

 

Eu costumo dizer a quem vai comigo e entra naquela Casa pela primeira vez, não vão eles ficar mal impressionados, que, no dia em que as obras acabarem, a coisa é capaz de ficar gira, mesmo muito gira. Muitos não compreendem logo à primeira onde quero chegar, mas todos, até hoje, acabaram por me compreender.

 

Na Casa da Música do Porto, as escadarias impõem-se bem, transpõem-se mal e expõem-se demasiado. São enviesadas, parecem e são oblíquas, estão de esguelha, são polígonos irregularíssimos, … e têm os degraus de altura e passo variável, talvez para acompanharem harmonicamente as esquinas bruscas a que o desenho exterior do edifício obriga.  

 

Algumas destas escadas, em certas perspectivas, parecem altíssimos paredões intransponíveis em aço inoxidável, tal é o desnível e a inclinação que apresentam. Em quase nada fazem lembrar o vergonhoso muro de Berlim, mas, se tivessem “graffiti” e outra “Scheisse” do género lá escrita, a coisa passava e ia trazer muito mais gente vinda de longe, para ver como é que aquilo era, sem ter necessidade de ter de se deslocar a Berlim.    

 

As escadarias mais largas têm duas vias com um separador ao meio feito em vidro laminado, tanto ou mais espesso que todos os outros que fazem parte da pobre exposição de materiais. Este separador serve, graças a Deus, de corrimão para quem vai pelas bermas e não quer correr o sério risco de se estampar na próxima paragem, que pode ficar lá bem no fundo daquela acentuada e agreste ravina sem pontinha de vegetação para amortecer as quedas.

 

Ainda há bem pouco, uma senhora que eu não conhecia de lado nenhum se agarrou desesperadamente a mim, toda com um  ar amarelo sorridente, a dizer-me "desculpe, quase que caía e o fazia também cair" (sic)

 

Numa outra vez, ouvi um autêntico cavalheiro dizer para uma senhora que cautelosamente descia "a senhora quer que lhe dê o braço?" "muito obrigada, hei-de me habituar", respondeu-lhe ela.

Ninguém no seu bom juízo ousa ir pelo meio das escadas. Todos procuram as margens onde sempre se podem agarrar a qualquer coisa. Os mais medrosos sobem e descem ao pé-coxinho, tal como as antigas crianças da escola que não tinham telemóvel e se divertiam saudavelmente a andar à macaca.   

Quando chegam ao fim do lanço, os melómanos mais cagarolas, que usam o separador central como apoio, inspeccionam a palma de pelo menos uma das mãos, para apreciarem o sulco profundo, quase em carne viva, deixado pelo efeito do atrito mão no vidro/vidro na mão.  

 

Nos extremos das escadas há, felizmente, sempre gente jovem atenta e simpática, (cheira-me que devem estar a recibo verde), para, numa espécie de praxe académica civilizada, ajudar os espectadores mais caloiros, informando-os acerca de tudo, onde fica isto ou está aquilo, para que lado é o Norte, como se vai para o Sul e, segundo me confirmaram, para assistirem os mais azarados que, apesar de todos os seus cuidados, acabam por cair e ficar estatelados a seus pés a pedir-lhes encarecidamente que chamem o 112, o muito conhecido ti nó ni - ti nó ni - ti nó ni .  

 

Não há escadas nem tapetes rolantes como nos “chopingues”, mas, vamos lá a ser justos, também não há escadotes de abrir, do tipo Sardão, espalhados, por todo o lado. E, se há, devem ser de alumínio e estar muito bem escondidos num qualquer dos muitos cantos da Casa.

Há, isso sim, há, alguns elevadores de caixa tipo contentor TIR, muito funda, estreita e alta, que param em estações diferentes, mas que nunca se sabe para onde vão, tantas são as vezes que eles se arrependem e voltam para trás.  

 

Às vezes, um dos elevadores pára mesmo à nossa frente. Todos, muito ordeiramente, louvado seja Deus, se agitam  na esperança de poder entrar. Abre-se suavemente a porta e assustamo-nos ao ver lá dentro uma pilha de gente com ar interrogador e aparvalhado a olhar, não menos assustada, para os que estão cá fora. Por artes mágicas, a porta volta a fechar-se e desaparecem, intrigados e sem soltarem um só pio que se ouça cá fora, aquelas caras amedrontadas metidas na caixa obediente, sujeita à programação que lhe foi imposta pelos muitos dedos que deram ordens e contra-ordens de a fazer enlouquecer.   

Quem se apanhar dentro dessas jaulas sem grades, e se não tiver ninguém no meio a tapar-lhe a vista, pode a muito custo ver, numa parede lateral interior, em letras bem gordas, mas assustadoramente pálidas e coçadas, uma série de nomes que dizem umas coisas que ninguém tem tempo de acabar de ler até à próxima paragem.

 

Certa vez, cansado de esperar pelo elevador, decidi, como alguns outros impacientes da minha estirpe, descer a pé pelas escadas de emergência anexas feitas em cimento. Demos, desolados, com todos os narizes na porta que dá para a garagem e tivemos, nessa emergência, de voltar ao ponto de partida, para não sermos espertos e ter, para castigo nosso, de começar tudo de novo.

Lá no topo há um restaurante, sem apetrechos de construção civil nem andaimes à vista, mas o aspecto é de que aquilo ainda anda em obras.

 

O restaurante é servido, creio eu, por dois lanços de escada valentes, tudo em aço inoxidável do bom, que impedem que a velhada, mesmo a mais faminta, se atreva a ir lá acima comer umas coisinhas leves, um tanto sofisticadas, mas bastante saborosas, diga-se de passagem.

 

Se para cima custa que se farta, por ser a subir e estarmos debilitados, imaginem só o que há-de custar descer aos que vêm suficientemente comidos e um nadinha entornados.

Aqui, às barreiras normalmente chamadas arquitectónicas chamam, muito a sério e não por descabida piada, barreiras gastronómicas. É que muita gente, mesmo que quisesse, não consegue lá chegar, e assim o negócio não se aguenta.

 

Nas primeiras vezes, mal apanhamos na mão o bilhete para o espectáculo, vamos logo a correr procurar encontrar a sala de concertos principal, a denominada Sala Suggia, assim chamada em homenagem àquela grande violoncelista, de seu primeiro nome Guilhermina, que nasceu no Porto nos fins do século XIX, em 1885, e na sua terra faleceu em 1950.  

 

No bilhete está escrito o número e a fila onde é o lugar de cada um, mas também lá está, muito bem escarrapachado, o rumo a seguir: Norte ou Sul. Desprevenido, na primeira vez que ali fui não levei bússola nem sextante e vi-me à rasca porque já tinha começado a tocar para entrar e eu podia, muito acertamente, ser impedido de pôr o pé lá dentro.

 

Também a correr, mas em passo muito mais largo e lesto do que o meu, um sujeito esbaforido gritou-me, como se fosse uma locomotiva que se afasta a validar o efeito Doppler: “se é para o Norte, venha comigo, por aqui … iii... iii ... !”

Se não era para o Norte, estava eu bem amolado, e, ora adeus, lá se ia a primeira parte do espectáculo! Perdia o comboio e, ou fugia para a rua, ou sentava-me, de cabeça bem mergulhada nas mãos, em qualquer um dos milhentos e variadíssimos degraus que estão à nossa disposição. Num daqueles poucos sofás que, na pressa,  alguém por ali deixou esquecidos, não me sentava eu! Se aparecia o dono, às tantas, ainda me ia incomodar e nem à segunda parte conseguia assistir.  

 

Como felizmente era para Norte, houve ainda tempo suficiente para que me dissessem onda era a minha fila, e só porque estava tudo cheio vi logo, de caras, apesar da penumbra que segundo a segundo se ia acentuando, qual podia ser o meu lugar: havia uma única cadeira vazia. Olé!

 

Ainda entrei, já com tudo muito bem calado a dar as últimas tossidelas, a tempo de ouvir dizer suavemente pelos altifalantes qualquer coisa em inglês, que um senhor a meu lado, em voz muito apagada e com a mão a tapar a boca, me traduziu, a dizer que era para eu desligar o telemóvel, não tirar fotografias e não me lembra agora mais o quê. O mesmo devia ter sido dito em português, no espaço temporal da minha forçada ausência, como pude certificar-me nos concertos a que, depois,  tenho vindo a assistir.    

Primeiro que eu acertasse na posição do assento, foi um autêntico martírio. Lembrei-me, e trauteei para dentro, a célebre “la donna è mobile … tará tá tá - tará tá tá...“

 

Passei todo o primeiro andamento com o assento a fugir-me, fazendo um esforço hercúleo para não me afundar nem atingir as costas distantes da cadeira à minha frente, onde estava sentada uma senhora de meia-idade, de óculos com lentes muito progressivas e também muito má cara, que passou aqueles três primeiros andamentos a voltar a cabeça e a olhar-me como se me quisesse, ali mesmo, comer vivo. Víbora!

Só no intervalo, após o fim do terceiro e último andamento, e depois de ter batido mais palmas que um louco muito bem passado a pano, é que o senhor do lado, aquele mesmo que fez a tradução do inglês mal eu me tinha acabado de sentar, me disse pacientemente como funcionava o assento e me mostrou o número do meu lugar, um número minúsculo, tipo pirilampo com a pilha quase esgotada, muito pequenino e mal iluminado, que está na ponta dos braços das cadeiras. Agora, já sei e, todo vaidoso, até digo o segredo aos estreantes que não percebem nada daquilo.

 

Como, no intervalo, quase toda a gente saiu, eu, para não fazer má figura, também saí.

Bem eu queria ir “lavar as mãos”, mas é o atreves-te. E se eu me perdia?! Fiquei-me ali pela porta, como ficaria um cão bem-educado com trela curta e coleira justa que só alça a perna quando o dono lhe dá uma assobiadela codificada.  

 

Aproveitei para perguntar à menina que estava à porta a controlar as entradas, e a ajudar noutras coisas, onde ficavam os WC. Como já não tenho muito boa cabeça para fixar coisas, nem as mais simples quanto mais as complicadas, desenhei nas costas do programa o sinuoso percurso a percorrer, para depois, descansadinho da vida, lá ir, mal acabasse a “performance”. E assim aconteceu.

 

Quando acabei, pela segunda e última vez, de bater muitas palmas, que só terminaram quando o maestro saiu e entrou, não contei, mas muito mais que seis vezes, ida e volta, e com toda aquela gente de pé em delírio, com alguns a gritarem “bravo” à francesa, é que pude sair, a correr para os tão almejados WC.

 

Eu já o tinha previsto. Mesmo a seguir ponto por ponto as instruções por mim escritas e anotadas, foram uns trabalhos não só para dar com a porta, mas também com o sexo: H ou S, (isto não é propaganda camuflada e nada tem a ver com o eficiente champô Head & Shoulders).

 

É claro que primeiro estive quase a meter-me no S, quando, por sorte minha, vinha a sair uma pessoa da categoria S, toda pinocas, a dar os últimos retoques, a mirar-se por si abaixo e a arranjar melhor a blusa.

Pude deduzir, embaraçado, angustiado e ainda mais apertado, que estava no sítio errado. Fui logo, sempre a correr, mas agora mais doido do que já estava, para o H, salvo seja, e lá tentei entrar, com o zip há que tempos já todo em baixo, desesperadíssimo e mesmo, mesmo atrapalhadinho de todo.

 

A porta é descomunal, (mas há por lá maior!), vai de alto a baixo, tem 3 metros e muito de altura e deve pesar muitas toneladas métricas. Que se lixe, vou fazer mesmo aqui! decidi, num desesperado "in extremis". Mas, céus, até para mim, Deus é bom! A porta abriu-se, abracadabra, e saiu lá de dentro um matulão muito jovem e bem musculado que, com algum esforço, vejam lá, conseguiu empurrar a porta. (As portas, como mandam as normas de segurança, abrem para fora).

 

Há horas felizes! O WC estava ali, ao meu inteirinho dispor e a meu gosto. Completamente vazio, limpinho, embora com imensa papelada no chão à volta dum buraco para toalhetes embutido na parede que estava a babar-se todo de tão abarrotado que estava!

 

Se lá estivesse alguém, eu, que tenho umas manias do Caetano, ia de certeza rebentar. Os urinóis, que pouco maiores são que uma tigela de sopa, estão bastante afastados entre si, mas não têm baias separadoras que evitem olhares sorrateiros de mirones, hoje em dia tão comuns e respeitados, a tentarem ver se eu era menino ou menina. Felizmente, não entrou ninguém. Fiquei aliviado, e puxei finalmente, dum só golpe, com os arrepiantes riscos que isso comporta, o zip todo até cima!

À saída, eu já previa, vi-me à rasca para abrir a porta. Sozinho, de certeza que não o ia conseguir. Mas, mais uma vez, deu-se um milagre: uma robusta e ainda jovem senhora da “Limpex” deu-lhe um puxão furioso, que até me assustou, e abriu-a a praguejar educadamente para poder entrar com a sua tralha e eu me poder raspar. Fo...go!

 

Nesta altura, já não sabia, aliás, nunca fiz a menor ideia, se estava no Norte se no Sul, mas como devia ser sempre a descer, e parece que não iam fechar tão cedo, não me atrapalhei e descontraído, deixei-me ir.  

Corajoso, carreguei num botão que tem uma setinha virada para baixo e meti-me no primeiro elevador que, muito sorrateiro, apareceu e gentilmente, sem eu fazer nada, me abriu delicadamente a sua porta. 

Entrei, um pouco a medo, confesso, e marquei -2, o piso onde tinha deixado o carro. Primeiro, ainda subi, apavorado, pelo menos dois andares, enfiado dentro da jaula, (aquela choldra é automática e alguém lhe tinha dado outras ordens antes de eu dar as minhas), e lá cheguei são como um pêro aos fundos da Casa. Livra!

 

Procurei o bilhete do parque, não me foi nada fácil encontrá-lo, confesso, e dirigi-me todo descontraído e afoito à máquina automática para pagar o estacionamento.

Não vão acreditar, quase tenho a certeza que não vão, mas a máquina estava fora de serviço e eu, na altura, estava com o carro da minha irmã Margarida que não tinha, mas há-de um dia vir a ter, Via Verde! Que raio de sorte a minha! 

“Avariada. Por favor, dirija-se a…,”, dizia num papel manhoso, com letra não menos rasca, muito mal bem preso na frente da máquina com tiras de fita-cola nos quatro cantos, tal como que fazem nos hospitais, mas aí com fita adesiva anti-alérgica.

   

Como eu estava no -2 e não via ali à volta nenhum sítio onde pudesse pagar, meti-me no carro e lá fui à aventura por ali acima em busca da saída.

O meu já digerido concerto tinha acabado cerca das 20:00 e já vinham carros a entrar para o das 21 e tal, julgo, se não estou em erro, que trinta.

 

Quando entrei, embora ameaçasse, não chovia, mas vi logo que, nesta altura, lá fora devia estar a chover à Porto, isto é, a potes, que é como no norte chamam aos penicos. Os carros que queriam desesperadamente sair estavam sequinhos como tinham entrado, os que chegavam, com os nervosos que queriam entrar, estavam todos mais encharcados que pintos traquinas que tivessem passado a tarde a brincar com patos numa grande poça de água.

A garagem era agora uma autêntica loja de secos e molhados.

Deixei o carro à balda, ali num sítio que estorvasse o mínimo possível, e fui para o último lugar da enorme bicha, (detesto chamar àquilo fila), que se havia formado.

 

A longa demora fez desesperar muita daquela gente bem vestida, o que fez com que, a dada altura, começasse, primeiro a cheirar a verniz estalado e depois a ver-se mesmo verniz no estado líquido a correr abundantemente pelo chão. Embora, na maior parte das pessoas, a camada de verniz fosse muitíssimo fina, há que ter em conta que estava lá muita gente e, uma gota de um aqui, mais uma gota de outro acolá, tudo somado, deu naquilo que se viu.

 

Depois deste cheiroso aperitivo, logo a seguir, veio o prato do dia, numa lista de três opções de fazer salivar qualquer um:

“Cozido de palavrões à moda do Porto”, “Manguitos à tripeira com ervilhas” e “Bagunça à portuguesa com batatada a murro”.

 

Reparei que não serviam meias doses, mas, à vontade, uma dose chegava bem para dois.  

Passada mais de uma hora naquilo, já os carros tinham acalmado e praticamente (totalmente, no Porto, é impossível) deixado de buzinar, lá consegui eu pagar e sair disfarçadamente como quem não quer a coisa, mas a desabafar cá comigo:

Esta m… não tem mesmo conserto!

 

***  

Descontados os exageros, é assim como vejo a Casa da Música do Porto. O meu intento é chamar a atenção de alguém que leia esta prosa  e, possa melhorar o que me parece estar mal. 

O Porto precisa, urgentemente, de muito mais coisas como esta tão preciosa Casa, mesmo com os defeitos que lhe apontei e as vicissitudes por que passou.  

 

*** notaram, certamente, que não falei da acústica da Sala Suggia. Não quero influenciar ninguém e acho que devem lá ir para ouvir como é.

Vão ver e ouvir que, juro, mesmo que lá ponham mais escadarias e outras indescritíveis  tropelias, vale muito a pena voltar.

 

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