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A corda

 

Comecei, desde não sei quando, a acordar sobressaltado, aos solavancos e todo atarantado, sem nunca saber bem onde estava.

 

Umas vezes, era o meu filho do meio, que me trata por tu e toca viola-baixo, que me abanava de manhãzinha a lembrar-me “ó pai, a corda!”

Uma corda da viola tinha-se partido e eu sempre me esquecia de lha comprar!

 

Outras, era a Tatiana, uma ucraniana que me trata familiarmente por tu e vai lá a casa todas as segundas, quartas e sextas fazer de mulher-a-dias, que me embalava a dizer aflita “ó senhor, a corda!”

Uma corda do estendal da marquise tinha-se partido e ela não a conseguia emendar!

 

Noutras, era a Ludmila, uma russa que também me trata familiarmente por tu e vai lá a casa todas as terças, quintas e sábados fazer de “mulher-a-noites” que me tocava de mansinho a sussurrar-me ao ouvido “ó querido, a corda!”

Uma corda das botinhas altas que lhe ofereci tinha-se desenfiado e ela não a conseguia voltar a enfiar! 

 

Aos Domingos, não era, é.

Nesse sagrado dia, é sempre um daqueles vizinhos que vai comigo exercitar-se, por causa da barriga, a tocar, com força e sem nunca tirar o dedo, a gritar lá de fora “Ó pá, a corda, porra!”

Eu sempre tinha de voltar atrás para levar a corda a que saltávamos de quando em quando no meio do “jogging”.

 

Resolvi acabar, radicalmente, com este desassossego.

 

Parti a viola do meu filho, despedi a Tatiana, vi-me livre da Ludmila, estou-me nas tintas para a barriga e, ao Domingo chego sempre atrasado, mas fresco e muito ladino, à saída da missa do meio-dia.

 

Quando eu pensava que, acabado o martírio das cordas, ia passar a dormir descansado, agora, acordo mais sobressaltado que nunca, cheio de olheiras e com a boca a saber a folhas de papel de dicionário muito lambidas nos cantos, a pensar obcecado no acordo que me querem impingir.

 

Acho que vou falar com a Ludmila e dou-lhe muitos pares de sapatinhos de reserva, sem atilhos, com tacãozinho proporcionado, nem muito fino nem muito alto.

Ai, como ela vai ficar contente!  

 

 

 

 

***

Um novo acordo ortográfico, com alguns pés, mas muito pouca cabeça,  ameaça a nossa língua.

 

 

19 de Abril de 2008

 

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