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A douta geração

 

A ampla capa de doutor cobre, como sempre cobriu, confessemos que desde que foi instalada a primeira escola primária em Portugal, para além dos que queimaram realmente as pestanas, o mais vasto leque de ignorantes, descarados, convencidos e pretensiosos.

 

É claro que o facto de ter queimado as pestanas para obter um canudo não nos garante que o esturricado pestanudo não seja um calino ainda mais bronco e incompetente do que muitos espertalhaços que usam os livros apenas como decoração da sala de visitas a que a mulher, semanalmente às sextas-feiras, espana o pó e volta a arquivar, muito certinhos, pela cor e tamanho das lombadas. 

 

Mesmo as pessoas que estão pouco atentas, pelo que vêem, pelo que ouvem e, umas raras, pelo que lêem, apercebem-se que a geração a que pertencemos está a ser marcada, de modo que temo ser irreversível, pelo predomínio da ignorância, pela ausência de uma migalha de cultura e pela vasta disseminação de farsantes, com cursos tirados também às sextas-feiras, pelo método “fast food” servidos por professores de boné de pala longa em universidades tipo Mac Donalds, sem toalha nem guardanapos de papel, mas com ameno ar condicionado.

 

 Tendem a acabar ou, como dizem os amantes da natureza, estão em via de extinção os competentes senhores Gomes, Lopes, Soares ou Silvas, assim, seco, sem qualquer título que permita ao menos imaginar o seu grau de sapiência ou, se quiserem, de ignorância, nesta ou aquela matéria. Os competentes senhores Gomes, Lopes e os outros tinham a quarta classe e foram servidos por professores de chapéu em salas geladas ou tórridas, conforme o local e a época do ano. Apanharam cachaços e reguadas de que muito se queixaram mas que, mais tarde, muito vieram a agradecer.

 

Os que, mesmo macdonaldiamente, não conseguem o objectivo de se encanudarem e têm um pouco de pudor escolhem e adoptam, a seu gosto, um título menos ousado mas, de qualquer modo, sonante e pomposo: técnico, perito, assistente, especialista, supervisor, assessor, etc. A seguir, juntam-lhe, conforme as exigências do lugar: de vendas, de compras, de contabilidade, de matraquilhos, de educação física, de panificação, de iluminação, de saúde, de confecções, de o que der mais jeito, conforme a lata que têm, e do prestígio de que se querem ver investidos. Já está. Ou, melhor, quase que já está. Veremos já o que ainda falta.

 

Engenheiros podem ser todos, assim lhes dê na gana, com direito ao respeito balofo de gente submissa e reverente sempre à espera de benesses e favorezinhos. Alguns, já com título firmado noutras áreas, vão, em geral, à engenharia buscar funções relacionadas com a sua actividade.

 

Vejamos alguns exemplos para a engenharia ou, se se quiserem entreter, mutatis mutandis, para a arquitectura e outras especialidades. Os antigos guarda-livros fazem engenharia económico-financeira, as donas de casa engenharia do lar, os jardineiros engenharia do canteiro, os madeireiros engenharia das operações florestais, a maioria faz engenharia do golpe que os enche de massa e a quem o fisco nunca consegue, porque não pode, não quer ou não lhe convém, sacar-lhes sequer um chavo.

 

 Muitos, os mais vivaços, encostam-se à política que acabam por abraçar e beijar, de boca aberta, sôfrega e indecorosamente na via pública. Depois de algumas ausências do lugar onde nasceram, todos acabaram por ser doutores lá na terra. Esses passam a fazer engenharia política. Agora sim, garanto que já está.

 

O mundo de analfabetos, encanudados ou não, é incontável; o número de cursos e títulos é inesgotável. Cursos e títulos feitos em pontos de cruz seguem, pari passu, de mão dada. Tendem a aumentar de modo avassalador fazendo da nossa terra um viçoso alfobre de intelectuais de sequeiro.

 

 Se faz sol, estão como na água. Se chove, estão-se nas tintas, mas sempre verdes como alfaces.        

 

 

 

 

*** A proliferação de "doutores" e outros titulares mais ou menos analfabetos

 

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