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A guerra incivil

 

Nunca atravessei a minha rua. Minto; cheio de pavor, fi-lo duas vezes, uma para lá e outra para cá, eram aí quatro da manhã e quase não passavam carros. Fui pedir ao vizinho da frente que pusesse a televisão um bocadinho mais baixo.

 

Eu, apesar de já ter os ouvidos bem atulhados de algodão, depois de inúmeras voltas na cama e de ter contado várias vezes enormes rebanhos de lanudos carneiros, não conseguia pregar olho com a barulheira infernal de tanto tiro e gritaria do filme de índios apaches que ele estava a ver, de janela aberta por causa do calor e de luz apagada por causa dos mosquitos. 

 

Esta minha rua, além de muito inclinada, é muito estreita e bexigosa com covas muito profundas e largas. Não tem passeios, passadeiras nem pensar, mas tem dois sentidos para os carros ufanos e ameaçadores que andam na esgalha, incessantemente, por ela a subir e a descer, ignorando os peões mais audaciosos que a ela se aventuram. Como quem lhes quer lamber a pele, passam-lhes tangentes tipo rasga-fato e arranca-botão e, infelizmente, (quantas vezes já isso aconteceu!), secantes tipo barriga aberta e fractura bem exposta ao público.   

 

Quando, de manhã, a começar a aventura de mais um dia, saio para comprar o jornal, além de toda a minha atenção muito bem atarraxada, levo sempre o credo na boca para o que der e vier, ou melhor, para o que vier não me dar. Sempre encontro um grande e velho amigo sobrevivente, como eu, destas lutas diárias, que com coragem rara também a sobe para comprar o mesmo jornal no mesmo quiosque.

 

Para baixo, regressamos sempre os dois a tentar conversar, mas pouco conseguimos dizer a não ser “olha lá essa cova”, “cuidado com aquele carro”, “ chega-te todo para a parede”, “não vias a mota?” … Falamos aos berros porque vamos um atrás do outro, para cabermos no pouco que da rua nos resta, ensurdecidos pelo barulho dos carros de combate a vomitarem cavalos selvagens e a ribombarem batuques primitivos pelas janelas escancaradas.

 

Indefesos, lá vamos atentos às tropelias do inimigo que, cobardemente, usa armas desiguais, inclusive as químicas lançadas pelos tubos de escape, para gradual extermínio em massa dos que ainda conseguem respirar.  

 

Entro em casa, com o jornal a tremer-me na mão e ainda a rezar uma oração. O meu audaz companheiro, agora só, lá continua estoicamente rua abaixo a arriscar a vida mais uns metros, a raspar o casaco pelas paredes, acossado pelo rosnar feroz das buzinadelas dos carros que lhe querem morder os tornozelos.

 

Para podermos tagarelar e pormo-nos em dia com o que se passa pelo nosso desgraçado mundo, à tarde, voltamos a percorrer o campo de batalha para, arriscando uma vez mais a vida, chegarmos ao nosso café, lá em baixo, ao fundo da rua.

 

 Apesar do barulho que também por lá se faz, mais o que por lá dentro se infiltra, sempre nos conseguimos ver e ouvir sem, até hoje, termos sido atropelados, em plena mesa, de chávena na mão, por um carro apatetado que alegremente se despistou lá fora e entrou pela janela dentro.

 

  Dentro do café, despedimo-nos “até amanhã, se Deus quiser”. Ainda nos faltam, cada um para seu lado, uns arriscados bons passos até chegar a casa.   

 

Deus, até hoje, tem querido. Até quando, não sabemos. Nem queremos que nos digam.

 

 

 

*** O automóvel e os automobilistas portugueses

 

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