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A minha ida ao concerto

 

Assisti, há uns dias, ao mais espantoso e inesquecível concerto que possam imaginar.

 

Gosto de ficar bem instalado, e escolho sempre o mesmo lugar, a meio da sala, na coxia central, onde ouço e vejo melhor. Embora os preços dos bilhetes aí tenham valores bastante elevados, muito acima do que é compatível com o meu definhado bolso, prefiro ir a menos concertos e ficar bem instalado do que ir a muitos, em lugares mais baratuchos donde não possa fruir na íntegra todo o sabor do espectáculo.

 Quando sei que o repertório é aliciante e que vem aí uma boa orquestra dirigida por um bom maestro, apresso-me a comprar o bilhete mal ele seja posto à venda.


Gosto de ver e sentir a sala bem cheia e o mesmo seguramente se passará com os intérpretes que se sentirão mais motivados com o calor humano que irradia de toda a sala. Um concerto às moscas, por melhor que sejam as obras, os autores e os intérpretes, é uma sensaboria das grandes.

Imaginem-me, no meu habitual lugar a ouvir o Pavarotti, de lenço em adeus pendente na mão, a cantar só para mim (seria um privilégio e uma honra demasiado grandes) e para dois ou três outros gatos espalhados, aqui e ali, pela imensa sala! Belo, mas frio, grandioso, mas gélido.


O último concerto a que assisti foi para mim uma experiência rara inenarrável. Paguei bem mais caro do que o habitual pelo meu lugarzinho do costume, mas de muito bom grado fui ao bolso sacar mais uns euros.

 

A sala estava mais cheia que um bom ovo; nem uma mosca por lá podia pairar. Era um belo e conhecido concerto em três andamentos, daqueles que nunca nos cansamos de ouvir, de um dos mais geniais compositores de sempre.

 

A orquestra e o seu maestro são considerados o que há de melhor no mundo e cantava Plácido Domingo. Um bolo tentador a que nem a cereja faltava. O maestro, um fora de série, figura conhecida pelo seu extremado rigor, não admite o menor deslize e, nos ensaios, repete e volta a repetir, até ao limite da perfeição, que ele procura desesperadamente atingir, todos os trechos da obra até se esgotar e deixar esgotados os intérpretes, todos eles verdadeiros virtuosos. Nunca em qualquer espectáculo seu houve a menor falha e a perfeição sempre foi atingida.


Agora vejam o que de insólito aconteceu nesse tal inolvidável espectáculo.


Um dos violinos teve um ténue deslize que escapou a toda a gente menos ao maestro. Sem mais, este logo ali interrompeu o concerto. Mandando levantar-se o artista que deu a imperceptível fífia, indicou-lhe, de cara severa, com um gesto rápido da batuta, a porta de saída. O público, eu incluído, ficou completamente siderado!


Uns bons segundos passaram até que todos reajustassem as partituras e se dessem novas afinadelas. Passado um sepulcral silêncio, tudo recomeçou "da capo" como se nada tivesse acontecido. O primeiro andamento chegou ao fim sem mais incidentes e muito poucos notaram a falta do músico expulso.


Logo aos primeiros acordes do 2º andamento, o maestro manda novamente parar e, voltando a usar a batuta e o mesmo tipo de gesto, põe lá fora um clarinete e um oboé. A sala, mais uma vez, petrificou.

 

Tudo recomeça, agora com menos três elementos. Continuei, como muitos dos melómanos presentes, sem praticamente notar qualquer falta. Vai entrar-se no terceiro e último andamento, onde Plácido Domingo intervém com a sua extraordinária voz.

 

O público tosse à pressa e acomoda-se ainda melhor nos seus lugares. Silêncio total. A orquestra ataca e, poucos compassos após, Domingo entra, empolgando de imediato toda a sala embevecida.

 

Inesperadamente, e pela terceira vez, o maestro não gostou de algo que só ele notou e, num gesto rápido mandou parar, partindo ostensivamente sem esconder a fúria, a batuta em duas.

 

O público, sem um só tossir, agitou-se, interrogando-se: quem é que irá ele pôr fora desta vez? O maestro, impávido e mantendo o ar severo, indica com o dedo (a batuta partira-se, com disse) a porta a Plácido.

 

Este, visivelmente desgostado com a decisão que considera injusta, usando a sua sempre extraordinária voz de tenor, chama, alto e óptimo som, mentiroso e palerma (estes dois insultos estão hoje em moda noutros respeitáveis lugares) ao maestro e, altivo e lesto, sai por onde tinham saído os outros três. Desta vez todos passaram a notar a falta de alguém.

 

Indiferente, o maestro, com meia batuta em cada mão, esgota até ao último compasso o excepcional concerto.


Dum pulo, logo os músicos que sobraram, largando a esmo os instrumentos pelo chão, ameaçam o maestro e trocam, com ele e entre si, gestos e insultos duma harmonia e sonoridade ímpares. A assistência agita-se e trocam-se na sala mimos desafinados de toda a ordem, muito para além dos oficializados palerma e mentiroso.

As galerias foram logo evacuadas, a tribuna a seguir e eu, que estive agachadinho com as mãos protegendo a cabeça, no meu lugar de sempre, só pude sair três horas depois quando, lá fora e cá dentro, serenaram os ânimos e a pancadaria foi dada como extinta.


Tão cedo, enquanto me lembrar disto, não mais vou a concertos. Livra!


Agora prefiro, de longe, ir ao futebol. Aí tudo se passa com a maior elevação e respeito. No fim, vencidos e vencedores, dentro e fora do terreno, abraçam-se desportivamente e, enquanto alguns técnicos e jogadores gentilmente acompanham os árbitros, com os braços sobre os ombros, até aos balneários, outros ficam em campo a distribuir bolinhas de guloseimas, todas elas autografadas, por aquela enorme assistência que sempre enche até às costuras os actuais campos de jogo.


Abençoado dinheiro que vão gastar com os novos dez estádios para que mais gente punhos-de-renda se possa juntar a mim.

Aqui, sim, a música é outra!

 

 

 

***

      Os desacatos e a violência nos campos de futebol transpostos, no meu imaginário,  para uma Sala de Concertos.

 

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