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A ousadia de Cavaco

 

Se Cavaco Silva não tivesse atrevidamente decidido concorrer às próximas presidenciais, não é difícil antever que Portugal, por falta de candidatos estimulados por tão disparatada ousadia, ia atravessar uma grave crise de identidade que, inevitavelmente, e pela segunda vez em apenas quatrocentos e vinte e cinco anos, nos faria perder a independência.

 

Um homem de origem modesta, parco nas palavras, de sorriso amplo esforçadamente rasgado, de saber limitado, sem o mínimo de cultura geral e, valha-lhe ao menos isso, não mais que um manga-de-alpaca honesto, trabalhador aplicado e bom conhecedor do seu ofício, não podia deixar de gerar, como gerou, uma gigantesca onda de revolta que, muito antes de rebentar, fez erguer bem alto o amor pátrio de uns e o desinteressado e puro amor-próprio de mais uns tantos.

    

Mas, mais e ainda muito pior: Cavaco atreveu-se a afirmar em público não ser um político profissional, apagando assim de vez o que restava da sua tão bruxuleante auréola!

 

Tal blasfémia deveria fazê-lo meter-se bem lá no fundo da sua própria concha, submerso bem ao largo nas profundezas do mar do seu Algarve, onde ninguém o visse, nem ele se pudesse crispar ao ver todo o tipo de monstros, inclusive os muitos que, não se compreende muito bem como, ali deram e continuam a dar à costa.

 

Prestigiados políticos, passe o pleonasmo, justamente indignados com tal desaforo, ergueram-se dum salto e adiantaram-se-lhe em tropel quando suspeitaram que ele se ia candidatar.

 

 Graças à sua desmesurada e absurda pretensão, outros valores mais altos se alevantaram. A Pátria estava salva!

 

Podemos, enfim, dormir descansados, tal como dormem os verdadeiros anjos.

 

 

 

 

*** Campanha para as presidenciais de 2006. Cavaco, como é sua norma, fala o menos possível e apenas quando lhe apetece. Os outros palavrosos candidatos lutam quixotescamente com um  moinho de vento. 

 

*** Esta foi mais uma das crónicas que por alguns foi mal entendida. Pelo menos um leitor, ao todo não sei quantos, pensou que eu estava a atacar Cavaco Silva! 

A ironia tem destas coisas.

 

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