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A tampa

 

Em frente à casa da minha tia Amélia, que vive um pouco a sul do Porto e onde passo por vezes uns tempos, há uma rua. Foi arranjada há pouco tempo e agora até tem dois passeios, um de cada lado, com candeeiros espetados muito certinhos. Está, pode-se dizer, como um brinco.

Os cabos eléctricos ficaram enterrados e também enterraram canalizações para as águas pluviais e as sanitárias. Os telefones, pelos vistos, não aderiram e os seus fios ainda têm a suportá-los a metade dos velhos postes de madeira que suportavam tudo e mais alguma coisa, inclusive a propaganda eleitoral.

A outra metade, do lado de lá da rua, foi eliminada e já estamos todos contentes porque assim não podem pôr faixas aos buraquinhos, abraçadas aos dois postes laterais, que ficavam lá até que o sol as degradasse e o vento as levasse. Ficavam quase sempre, até à próxima campanha, os restos vitais que fixavam as tais faixas que passavam, libertas uma da outra, a bater o resto do tempo nos postes, após a perda da faixa, ao menor sopro de vento. Era chato, mas aguentava-se e, se o vento não era muito e a favor, lá se ia conseguindo dormir ao som monótono duma espécie de matraquilhos.

A casa agora já não abana tanto como abanava quando passavam no pavimento, com ondas de meio metro, os camiões, os autocarros e até aqueles carros muito encolhidos que não precisam de carta para ser conduzidos. Sem nunca ter usado qualquer sismógrafo, nem no antes nem no depois, acho que este, em média, teria passado a caneta do grau 7 para o 1 na escala de Richter, sempre que agora passa qualquer mastodonte de maior ou menor porte.

As tampas dos esgotos, colocadas bem no meio da rua, assinalam todos os carros que lhe metem as rodas em cima, "pum-pum", "pum-pum" ... Fomos já várias vezes dar conta do sucedido às autoridades competentes e já algumas vezes veio gente, mais impotente do que competente, tentar abafar, sem êxito audível, o "pum-pum" que não nos deixa às refeições acertar, à primeira, com a comida na boca, quanto mais pegar no sono, sempre à espera que passe o último carro noctívago ou chegue o primeiro mais madrugador.

Do lado de lá da rua, para a alargar, deitaram um muro abaixo; dizem que é para fazer lá ao fundo casas de média estatura, e até está previsto, no local estreito onde não cabiam casas, fazer um pequeno jardim. Sem o tal muro, silvas pujantes apareceram do lado de lá da rua porque, com a crise, ainda não começaram a fazer as casas. Do jardim, que fica tão bem na planta, também não há ainda quaisquer sinais.

Numa manhã que era de domingo, muito cedinho, vi, espetado em frente às frondosas silvas, um cavalete com um cartaz, que curioso fui ler. Dizia umas coisas feias relativas ao "jardim" e ao presidente da Junta de Freguesia a quem responsabilizavam do desmazelo ali patente.

Alguém da Corte deu o lamiré e cedo o visado apareceu sem alardes, em pessoa, acompanhado de um outro senhor também muito bem posto, e toca de retirar expeditamente o selvático enxovalho e metê-lo na mala da sua viatura particular, levando as ofensas para queimar em parte incerta.

No entanto, a minha tampa, que eles, se calhar, pisaram com o seu expedito carro vassoura, lá continua, como tantas outras, no seu "pum-pum" infernal, até que uma noite alguém se lembre de pôr em cima dela (e de tantas outras) um cavalete a dizer: "Pede-se ao senhor presidente da Junta de Freguesia que venha, ele próprio, fazer calar esta t(r)ampa".

 

 

 

 

*Esta cena, com alguns retoques meus, passou-se em Valadares, Vila Nova de Gaia. A tampa lá continua a bater ao ritmo dos carros que lhe passam por cima!

 

** Em meados de 2007  a tampa calou a boca. Parabéns à Junta de Freguesia de Valadares.

 

*** Em Maio de 2010 fui mais uma vez passar uns dias a casa da minha tia Amélia. A tampa estava novamente no activo! Para fazer a ligação de esgotos dum prédio novo que ali mesmo em frente está a ser construído, houve que a levantar. E agora lá está ela outra vez, dia e noite, com o seu infernal "pum-pum" a massacrar os infelizes que por ali são obrigados a morar.
 

**** No dia 7 de Junho de 2010 enviei uma mensagem ao novo Presidente da Junta de Valadares a contar-lhe o que estava a acontecer. Nessa mensagem, em anexo, seguiu esta crónica com os apontamentos que fui acrescentando

 

 

 

 

 

 

***** No dia 8 de Junho de 2010 recebi a gentil resposta que, com a devida vénia, vai  a seguir:

 

 

" Boa tarde,

 

Antes de mais devo dizer-lhe que fiquei muito grato pelo contacto.

 

Li com atenção a sua interessante explanação e, naturalmente,

como qualquer pessoa sensata o faria, atribuo-lhe toda a razão.

 

No entanto, neste país, há tantos lapsos, erros e aldrabices miudinhas que,

tantas vezes repetidos se tornam problemas gigantes que acabamos

por nos sentir, de facto, impotentes.

 

Quem me dera que a comunidade soubesse da história a metade

- como é possível alguns problemas mesquinhos subsistirem irritantemente?

 

O problema que refere é um deles.

 

Para atalhar caminho, posso dizer-lhe desde já que irei tomar providências

quanto a esse problema que é recorrente.

 

... sonho obter resultados!"

 

Grato pela sua comunicação que não é mais que o exercício da plena cidadania, 

 

Apresento cumprimentos

 

Artur Gandra  

 

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