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A tradição da força

 

Nasci numa aldeia era ela pequena, recatada e pacata. Ainda hoje ali todos se conhecem e são parentes mais ou menos chegados. A aldeia não cresceu, o recato quase se perdeu e o que eu julgava ser paz não passava afinal de uma espécie de tréguas intermitentes de longa duração. 

    

As mulheres, as figuras centrais desta história que muitas vezes testemunhei, vivem num mundo à parte. Movem-se no reduzido espaço que a curta trela a que estão presas lhes permite alcançar. De geração em geração, essa trela foi-lhes sendo transmitida através do cordão umbilical das suas também atreladas mães. Já não a sentem, o que é bom, e todas a aceitam sem pensarem em dela um dia se libertarem, o que é mau. O mais longe aonde podem chegar é ao regato que corre na aldeia e onde nunca falta a água porque, todo o (quase) santo ano, lá muito chove. Aí vão lavar a roupa, desabafar maleitas e contar vidas.  

 

Os homens, que jornam de sol a sol, após o trabalho vão directos às capelinhas, onde beberricam copos com mais exagero que sobriedade, antes de chegarem a casa onde sempre rodopia a mulher, de noite a noite, até mais não poder.

 

Aos domingos, juntam-se eles no largo da terra a fazerem o que fazem quando regressam do trabalho. Mas, nesse dia, sobra tempo aos mais velhos para jogarem à sueca, aos já entradotes para jogarem à malha e aos mais novos para jogarem à bola. Elas, em casa ou sentadas à porta, no tempo que sobra, ponteiam as meias, remendam a roupa e, depois de darem de comer aos bichos, preparam a janta para quando chegar o homem, nunca se sabe quando nem como.

 

Uma vez por ano, é no terceiro domingo de Outubro, quebra-se a monotonia e, nesse dia a que lá chamam, sem a mínima pretensão de fazer humor, a “Noite da Mulher”, todos, eles e elas, se reúnem numa animada festa em que, só a gente da terra participa. Durante muitos anos não vinha ninguém de fora a não ser aquela gente roída de saudades que anda a ganhar o pão lá longe por Franças e Araganças. Agora, nesse dia, a terra abarrota de gente curiosa que vem de toda a parte.

 

A festa, dizem os nossos avós, começou a fazer-se há mais de quinhentos anos, antes do tempo dos Filipes, quando as mulheres mais inconformadas se lembraram de mandar fazer rezas e bruxarias para enfeitiçar os homens para que estes delas não fizessem escravas e nelas tantas sovas descarregassem. Diz-se que alguns deles, os de mais fortes mentes, não se deixaram enfeitiçar e logo aí combinaram maneira de delas se vingarem e vazar a ira. Assim nasceu essa longínqua tradição. A festa tornou-se coisa sagrada de que nem eles e, vejam lá, nem elas, querem abdicar. 

 

Nesse domingo, elas vestem, por cima de dois amplos e compridos saiotes, saias até ao chão, por si para o efeito confeccionadas ao longo do ano nos seus tempos livres, e saem à rua, como habitualmente fazem os homens. A eles todavia não se juntam e todas, velhas e novas, casadas com homem vivo, se reúnem junto ao pelourinho num tagarelar aparentemente alegre que não consegue disfarçar um íntimo nervosismo. A cerimónia começa ao tocar do sino às seis da tarde, quando o sol já fraco se esconde a anunciar a noite e deixa abertas as portas a um frio cortante.

 

Nessa altura, não apenas para que se faça luz e se aqueça o ambiente, começa verdadeiramente a festa. Um grupo de homens da comissão alinha-as em fila dupla. Quando todas estão integradas nessa longa formação, dois outros organizadores, munidos de grossos archotes, deitam o fogo às saias do par da frente, enquanto outros dois o impedem de abandonar a fila antes que o fogo se propague ao par seguinte. Mal isto acontece, soltam-no.

 

 Quando o fogo chega ao terceiro, libertam o segundo. E assim sucessivamente, até ao último par, neste efeito de dominó com pedras gritantemente vivas, entrar em incandescência.

 

Já a noite caiu e aquele comboio de tochas acesas corre desenfreado para extinguir as chamas no riacho onde habitualmente, quando apagadas, se esfregam vidas enquanto se lava e torce a roupa. Quase todos acham o espectáculo belo e, para a gente da aldeia, é um motivo de orgulho ver a destreza e a valentia das suas intrépidas conterrâneas.  

 

A coisa entretanto começou a cheirar cá fora e logo passou a vir, cada vez de mais longe, gente aos magotes ver as festas da minha terra. Todos eles, com os seus farnéis, chegam lá como sempre chegaram, a pé ou de carroça, pois infelizmente ainda não há estrada que deixe passar camionetas ou automóveis.

 

Esse cheiro a esturricado, ultrapassou com os ventos as fronteiras da região e fez aguçar o faro de gente de toda a parte que agora ali passou a acorrer. Alguma, apanhada de surpresa, insurge-se com o desrespeito à dignidade da mulher e o desprezo da lei vigente. Querem mesmo acabar com este cerimonial que dizem ser infame e impróprio dum país civilizado. Agora, mete sempre a autoridade que, com fastio, toma conta da ocorrência e fecha impávida os olhos por fora enquanto os arregala muito divertida por dentro.

 

Eu, que há muito lá não vou, sou tido como um inqualificável degenerado e tenho, passe a impressão, a cabeça a prémio. Se por lá me apanham, e mesmo que não seja no terceiro domingo de Outubro, com o sino a tocar fortemente a rebate, vão amarrar-me pelo pescoço ao pelourinho envergando fartas saias e saiotes até aos tornozelos. Nem quero sequer imaginar o que a seguir me vai acontecer.

 

Mas, esperança tenho que não comece então a contagem crescente dos séculos de uma nova velha tradição e que haja que adaptar, à medida, as leis na época vigentes. Se é que, daqui a quinhentos anos, ainda há leis e gente para não as cumprir. 

 

 

 

*** Acerca das (con)tradições de Barrancos , lá e baixo , no Alentejo, em Portugal  e também  na Europa. 

 

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