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As cadeiras

 

Salazar era, suspeito que ele disso não se deu bem conta, um ditador. Embora também muito adulado e venerado, nunca foi tão feroz e repelente como muitos que ainda pululam por todo esse mundo.

 

No íntimo, pouca gente gostava verdadeiramente dele, a não ser a sua dedicada e eficiente governanta, a quem ele somiticamente pagava, a tempo, do seu bolso, tal como pagava a luz, a água, o conserto das botas e as parcas despesas da casa. Os dois eram de contas muito certinhas e levavam uma vida extremamente austera que poucos invejavam, a não ser os forretas doentios que guardavam o dinheiro no colchão de folhelho, entre ácaros e outros parasitas de alcova.


Todos, forretas e não forretas, lhe tinham um medo de partir ao meio, e os que mostravam idolatrá-lo faziam-no com aquele meio medo que lhes garantia uma certo sossego e conforto na vida.

 

Os que não gostavam mesmo dele, não fosse ele saber, fugiam a corpo inteiro com as duas metades do medo para não serem apanhados e engaiolados, como aconteceu aos mais estóicos e arrojados que de perto o ousaram enfrentar.


Raramente o homem saía de casa e, se o fazia, mula que era, nunca dizia que o ia fazer. Salazar tinha estado, ou, como sempre anunciavam em “corajosos” diferidos todos os “media” da época, o referido senhor esteve. E tantas vezes se ouviu dizer que o fulano esteve que muitos julgavam, e outros, com um bem camuflado sorriso, diziam que ele também se chamava Esteves.


Oficiais passeatas, comezainas, festarolas, golpadas, governanços, escandaleiras, roubalheiras, trapalhices, ordinarices, enfim, tudo o que fosse contra as regras da mais elementar decência não era para o seu feitio, e ai de quem lhe chegasse aos ouvidos haver pisado o risco.

 

Nesse aspecto, ele foi, mas com a maior das eficiências, o percursor da mais que falhada tolerância zero aplicada pelos vindouros, no princípio, às estradas com os seus inúmeros e terríveis acidentes e, posteriormente, também sem qualquer êxito, a outros tortuosos caminhos onde os desastres não são menores nem menos aterradores.


Creio, convicto, que o referido senhor fazia tudo para governar bem, e o tempo, faça-se-lhe essa elementar justiça, veio dizer que nada fez para, a si, se governar. Deixou de lado uns míseros trezentos contos no banco que nunca conseguiria gastar.

 

 Foi muita pena que não soubesse escolher o momento exacto de sair em ombros, antes que o caruncho, subversivamente, tivesse tido mais que tempo para minar a sua velha e fatídica cadeira que um dia se esboroou e o deixou estatelar desamparado, não mais conseguindo soerguer-se para tentar ao menos sair nem que fosse a rastejar.


Veio inexoravelmente Abril e os tempos mudaram. Cadeiras daquelas, nunca mais, decidiram os que, cansados de estar de pé, se queriam agora sentar. E assim, logo mandaram que se fizessem montes de cadeiras muito bem imunizadas para os que estavam e para os que fossem chegando.

 

 Dinheiro mal gasto. Poucos se sabiam sentar, muitos não chegavam à mesa, imensos não sabiam lá estar, os mais matreiros, com esfarrapadas desculpas, levantavam-se quando não lhes cheirava a comida, os mais finos escapavam-se mal enxergavam uma cadeira vaga com espaldar mais alto.


Sobram cadeiras? Não. Falta quem as mereça ocupar.
 

 

 

***

A  maior parte dos políticos pós 25 de Abril é uma verdadeira desgraça.

 

 

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