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As histórias do nosso tempo

 

Quando alguém, realizou feitos que lhe dão direito, menos por boas do que por más razões, a ficar na História, são muitos os que, quando essa figura desaparece do número dos vivos, mesmo tendo com o protagonista, lado a lado vivido, seguido os seus passos, farejado o seu íntimo, adivinhando a sua presença pelo rasto do "after-shave", nos vêm dizer que é ainda muito cedo para fazer um julgamento definitivo sobre tal personalidade, a quem classificam candidamente de controversa; que a História ainda não pode ser feita, que o tempo se encarregará de repor a verdade, de corrigir injustiças, etc., etc.

Passarão certamente alguns séculos até se afirmar que Adolf Hitler foi um homem extremamente bondoso, sem aquela descaída melena na testa nem aquele estreito bigodinho escorrido do nariz, um grande amante da paz e dos povos, sem distinção de cor, raça ou credo, e, para culminar, um dos grandes mártires de Auschwitz, onde morreu no forno e saiu em fumo, pela chaminé, direitinho para o Céu, sem concretizar o seu magnânimo sonho que era de dar a todo o seu povo (Volk) um carro (Wagen).

Esperem, mais uns seculozinhos e verão, não sei se decepcionados, que Salazar afinal foi um activo militante da esquerda radical que, do seu bolso e sem ninguém saber, nem mesmo a sua governanta, a zelosa dona Maria, mandou construir uma luxuosa colónia de férias no Tarrafal para os filhos dos trabalhadores mais desfavorecidos.

Aguardem mais uns milénios e não se espantem de ver escrito que Portugal, já muito antes de 2000, era o mais próspero país do mundo, a quem, só os Estados Unidos, sempre geridos por gente estúpida e boçal, atolados em dívidas até ao pescoço, deviam milhões e milhões de dólares.

E aí, orgulhosos com o patriotismo a embargar-lhes a voz e a secar-lhes a garganta, saberão que os nossos governantes de então, perante tão fatal insolvência e a compungente miséria que por lá ia, num largo gesto nobre e magnânimo, resolveram perdoar-lhes integralmente a dívida e dar-lhes a ex-base das Lajes para eles poderem sobreviver com um mínimo de dignidade, lá cultivando feijão, nabiça, couve-flor e muita fava.

Pela experiência das múltiplas versões que me contam da história do meu tempo, esta que está a passar, ao vivo, mesmo à frente destes meus olhos (a que atiram carradas e carradas de terra suja), eu sei quão apressados são muitos dos julgamentos que se fazem ainda a quente, mas também sei quanto eles, mesmo a frio, são míopes, vesgos, cegos, facciosos e, até, indecorosamente mentirosos.

Seja como for, quando esses nossos tão isentos historiadores quiserem retardar o esclarecimento da vida e obra de certos ilustres figurões da sua tonalidade política, não me venham sempre alegar que há que deixar amadurar e sedimentar as coisas, para, numa perspectiva isenta, global e distante, podermos determinar o que realmente se passou.

Digam-me só, para que eu possa entender e ficar tranquilo: vamos esclarecer as coisas, tão expeditamente quanto possível, enquanto elas se podem esclarecer e demonstrar com o testemunho das gentes lúcidas e honestas que com esses conviveram e que, vivinhas, ainda cá estão, ou vamos tirar tudo a limpo daqui a uns largos séculos, consultando livros de cordel, de autores desconhecidos, onde faltam imensas páginas, ou almanaques desbotados roídos pela traça, decifrados com a fraca ajuda das almas penadas que há muito já lá estão, mais que esquecidas das coisas terrenas e preocupadas com os imensos problemas do Além?

 

 

 

*** Alguns dos nossos "historiadores" são muito cautos nos seus juízos.

 

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