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Badamecos em camadas

 

Quando cheguei a casa e disse ao meu pai que tinha tirado uma nota um bocado bera a matemática, não lhe estourou o aneurisma e até se pode dizer que resistiu muito satisfatoriamente ao primeiro choque. Mas, logo a seguir, começou a ficar com um rosado intenso até atingir, num ápice, o vermelho luzidio de tomate bem maduro e esfregado. 

 

Em passos largos, que iam quase duma parede à outra, começou a gritar aos ventos caseiros que ia passar lá pela escola para tirar as coisas bem a limpo. Inadmissível, vociferou ele, dar um dezassete a um miúdo, para mais tão inteligente que nem, uma só vez, precisa de abrir um livro em casa! Vamos ter festa! Ai vamos, vamos! 

 

O meu pai, que nestas e noutras coisas não é muito pessoa para graças, logo decidiu ir à escola falar com o professor de matemática, um badameco qualquer que ele detesta profunda e particularmente.   

 

O meu pai, que é técnico de acupunctura, nas suas raras conversas que tem sobre coisas do ensino e do estado a que tudo isto chegou, quando se fala de professores, diz sempre “aqueles badamecos”, sejam eles de matemática, sejam eles de qualquer outra indisciplina. Na escola, os professores já todos o conhecem, e têm pavor de lhe cair nas mãos, pois já não é o primeiro a quem ele espeta enormes agulhas nos sítios mais inconcebíveis que ele sabe serem os mais dolorosos.     

 

O meu pai, quando está mais fora de si, em vez de lhes chamar badamecos, a espumar abundantemente, chama-lhes bandalhos, a espumar ainda mais.

 

E foi o que aconteceu desta vez com o caso do meu dezassete: “Um bandalho que, em plena democracia, tem estômago para ensinar matemática a crianças inocentes e indefesas, não pode ser pessoa de bem. E, generalizando, como faz com tudo que lhe cheire a funcionário público, rematou: “uma camada de pulhas excedentários é o que toda esta canalha é!”  

 

Quando cheguei a casa, como sempre muito lá “pás” tantas, vi-o na sala ainda acordado e, como quem não quer a coisa, fui ter com ele para sondar o que tinha sucedido lá na escola. Eu, da janela, tinha-o visto sair manhã cedo, muito lesto e vigoroso, com o enorme guarda-chuva azul tauromáquico na mão, naquela já quente e radiosa manhã de sol!  

 

“Olha filho, encontrei lá na escola o pai daquele teu colega de turma, o Sandro, aquele moço que também falta muito às aulas e casca forte e feio nos professores quando lhe fazem subir o “ketchup” ao miolo.”

 

O pai do Sandro, é bom dizer, não falha um só telejornal da TVI e lá vai ouvindo as notícias, sempre distraído com a boca desmesurada da Manuela Moura Guedes e incomodado com a barra deslizante que, no fundo do ecrã, aparece a correr notícias frescas de futebol, de touros de Barrancos, do Bush e de outras coisas assim importantes.  

 

O meu Pai continuou:

“O pai do Sandro ia ao mesmo que eu. O filho só tirou dezoito, e a coisa não pode ficar assim!

 

Entretanto, quase me jurou ter ouvido a Manuela a dizer que os pais vão passar a ter uma palavra na avaliação dos professores, mas queria verificar se tal, de facto, era verdade.

 

Resolvemos esperar que a notícia nos fosse confirmada, como desgraçadamente foi, e, agora, bem apetrechados, lá fomos, quase a correr, falar com a tal besta do professor de matemática que estava, só, na sala de aula. Batemos à porta e, mesmo sem pedir licença, qual licença, qual carapuça, entrámos de rompante.

 

 O homem estava de olhos tapados com as mesmas mãos com que também segurava a cabeça e a cara toda borrada de giz.

 Sem nos ouvir dizer palavra, nem perguntar ao que vínhamos, sem destapar os olhos e, continuando voltado para o tampo da secretária onde apoiava os cotovelos, limitou-se a dizer:

Já sei o que vos traz aqui. É verdade. Isto é tudo uma grande camada de canalhas e badamecos!” 

 

 O meu pai, com a pega enorme do tal guarda-chuva que levara, arrastou o pai do Sandro para a saída e ambos se afastaram, sem dizer uma só palavra, fechando suavemente a porta atrás de si. 

 

 

***

Anda nos ares que os pais dos alunos vão entrar no grupo dos que vão avaliar os professores. 

 

 

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