top of page

Coisas de graúdos

Quando eu era miúdo, um tio meu costumava frequentemente levar-me ao jardim onde ambos fazíamos loucas correrias e dávamos arriscadas cambalhotas até todo ele se esfalfar, acabando por desistir e ir sentar-se num banco, donde, sempre atento, ia tendo um olho em mim.  

,

Naquele tempo os bancos eram confortáveis, apesar de feitos com traves de bem dura e boa madeira e nada tinham a ver com as gélidas e tétricas pedras tumulares que os paisagistas de agora disseminam por toda a parte, Tais bancos, (pasmai, ó gentes!), tinham encostos onde as pessoas se podiam reclinar enquanto gozavam com lassidão, de perna traçada ou por traçar, a calma idílica de qualquer jardim comum daquela época. 

 

Em dada altura, era fatal, o meu tio começava a cabecear até engatar numa serena e duradoura soneca, enquanto eu, distraído e despreocupado, continuava a brincar sozinho ou com qualquer miúdo que por ali aparecesse. Sem querer e absorto na brincadeira, algumas vezes afastava-me para lugares donde ele, tranquilo e confiantemente sentado, mesmo que estivesse acordado, não me podia enxergar.

   

Uma dessas vezes, fui ter ao pequeno lago que havia nesse jardim, já muito fora da vista desse meu querido parente, um irmão bastante mais novo que a minha Mãe. No laguinho, deslizavam tranquilos cisnes e patinhos no meio de coloridas gaivotas de aluguer, pedaladas por pares românticos que trocavam permanentemente entre si os sorrisos mais castos que havia naquele mundo de então.  

 

O pior aconteceu quando um dia, traquinas que eu era e maroto nada menos, me atirei muito disfarçadamente, como se tivesse sido empurrado, para o lago, fazendo voltar-se uma gaivota, o que fez voar pela borda fora o enlevado par que nela navegava e que ficou muito mais furioso comigo do que encharcado consigo.   

 

Com a gritaria, esbaforido, e todo aflito, apareceu, uns momentos depois, o meu tio que logo pediu imensas desculpas pelo meu infantil “descuido”, mal ele sabendo que o sobrinho tinha deliberadamente sido a causa daquele pequeno naufrágio.  

          

Ainda bastante encharcado, saí do jardim pela sua mão e ele, um tanto severo e seco, disse, muito baixinho, exactamente estas palavras:  

 

“Hoje, não contes à Mãe que te trouxe ao jardim!”   

 

Este episódio sempre me vem à mente, quando vejo que andam nas nossas barbas a tentar emendar a História, dizendo que o Holocausto que exterminou muitos milhões de inocentes é uma maldosa farsa e que, tal como muitos outros, o longínquo campo de concentração e extermínio de Auschwitz, lá muito longe, na sempre massacrada Polónia, foi uma vil montagem e que tudo aquilo, na realidade, nunca existiu.

 

Aqui há uns anos, só para tirar as teimas, decidi ir ver. Aproveitei corajosamente para, depois de Auschwitz, ir dar uma outra também “inesquecível” olhada por Birkenau, uma outra amostra daquela barbárie, que fica situada ali mesmo ao lado e que facilmente se calcorreia a pé, no mais impressionante silêncio dos que, acabados de sair de Auschwitz, para tal ainda resta coragem para a tal se aventurarem.   

 

À saída, junto da sinistra torre de vigilância que fica à entrada, senti nitidamente a mão quente do meu tio agarrada à minha a levar-me, encharcado de suores frios, desta vez a dizer-me bem alto, para que todo o Mundo pudesse ouvir:  

 

“Hoje e Sempre, conta a todos, e bem alto, o que acabaste de ver aqui!”    

 

 

 

 

bottom of page