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Com a saúde também se brinca

 

Antes que venha a rebentar pelas costuras da operação que fiz a uma hérnia discal, com muita cautela porque a coisa ainda está fresca, venho contar a empolgante odisseia por que passei, de que ainda não estou inteiramente recuperado e nem sei se alguma vez mais virei a estar. Tratou-se de uma dolorosa (bolas) e ao mesmo tempo muito interessante (porra) experiência por que passei que, para não mais a esquecer, quero deixar bem registada. Apresso-me a fazê-lo antes que venha intrometer-se alguma qualquer razão que impeça este meu propósito, como me aconteceu em miúdo, então por não saber ler nem escrever, quando tive as bexigas loucas, o sarampo e, já não me recordo bem, se também o trasorelho. Não, o trasorelho não.


Desta vez, fica escrito e foi assim:


Cheguei, em Julho de 2006, aparentemente sadio e escorreito a Albufeira, uma velha vila de pescadores de camisas aos quadrados e beatas curtas, a maior parte do tempo apagadas no canto de cada boca. Hoje, esta outra Albufeira irreconhecível é uma “cidade” cheia de pecadores impunes, quase todos gente de camisa com colarinho branco com longos e fumegantes charutos muito bem centrados na boca.


Preparava-me para passar mais umas feriazinhas, do tipo repartidas, e gozar o forte sol algarvio, cautamente coado pelo meu amplo guarda-sol branco-sujo, alternando a doce penumbra que este me proporciona com umas aprazíveis banhocas no mar. Isto nas ocasiões em que a bandeira verde, toda caída e alegremente murcha, me alicia e quase me empurra, sem ter eu de correr o risco de pagar qualquer coima ou ouvir um raspanete em forma de assobiadela, para as águas amenas e temperadas daquele convidativo mar, umas vezes azul e límpido, outras esverdeado e turvo.


Esteja ele azul ou verde, esteja a bandeira da cor que o banheiro quiser, os resultados pespegadas num painel junto aos apetrechos de salvamento são eloquentes. Tudo está sempre bem! Tão bem, tão bem, que até posso emborcar confiante uns tantos pirolitos daquela água algo salgada, oficialmente inócua para todos os banhistas, desde os medricas do lava-pés até à aos bravos idiotas que querem dobrar o Bojador.


Tais resultados quase ilegíveis, muito safados pelo Sol, referem-se a um dia e a um mês que não consigo ler, mas quase pela certa, da época balnear em curso. Os valores registados no boletim oficial enchem-me de orgulho português e, como quem diz orgulho diz mergulho, lá vou eu desenfreado para debaixo do guarda-sol antes de me resolver a, pé ante pé,  entrar na água.


A merda residual, através de uma longa e bem abonada conduta, que eu e muitos outros paspalhos durante meses e meses a fio lá vimos estender pelo mar dentro, agita-se, lá longe, rodeada de cardumes de peixes gulosos, na ainda reduzida profundidade do mar. O lá longe é aquele preciso local em que sobrenada uma ampla mancha escura onde vai desaguar esse tal tubo. Aí, pairam e esvoaçam aos gritos, excitadíssimas com o maná que ali brota, dezenas de gaivotas muito bem nutridas e entroncadas que assinalam com precisão o local que todos, mesmo os cegos mais blindados e os surdos mais petrificados, conseguem inequivocamente localizar.


Uma Estação de Tratamento de Águas Residuais, uma ETAR, como se diz abreviadamente, sei eu que existe, como todos podem detectar em certos dias pelo pivete de intensidade variável emanado da moderna unidade que instalaram junto a uma rua central muito perto das casas e não muito longe do mar. Mesmo quase em frente a esta, um dos bandos desses ávidos glutões que impunemente invadiram de norte a sul as nossas terras construiu aliado a outro poderoso bando que deixou construir um volumoso edifício que se vai destinar, entre outras coisas, a mais um hotel, não sei bem de quantas estrelas, mas certamente muitas. Coloridas brochuras hão-de em breve vir anunciar que de lá se pode ver o mar, nem que tal privilégio só possa ser usufruído pelos de maior estatura apoiados nos bicos dos pés lá bem em cima nos vértices das duas torres piramidais que o ornamentam. Quase apostava que ainda aí se pode inalar, admito que já algo rarefeito, o cheiro merdífero que paira sorrateiro cá por baixo ao nível dos narizes dos andarilhos em calções e tronco nu, com os pés enfiados em grossas peúgas de nylon cheias de borbotos, tudo isto metido dentro de gigantescas sandálias às tiras.


No segundo dia de estada, após ter carregado para o apartamento sacos e sacos de mantimentos, comecei a sentir preocupantes dores num crescendo cada vez mais intenso, sinal de que algo não estava bem nos meus já bastante gastos e mal lubrificados gonzos. Algum mau jeito, pensei eu à noite na cama, sempre a tentar reajustar sem sucesso a minha inocente almofada. Vamos lá a ver se isto passa como das outras vezes, confortava-me eu.


É o passas, claro que aqui elas são do Algarve, para azar meu e proveito de uns tantos bons samaritanos que vivem destes e doutros azares da vida alheia; ao longo desta longa história eles irão surgindo com várias formas, níveis e matizes!


Não conseguia pregar olho com as dores que desciam em frequentes e descontrolados espasmos pela perna abaixo. Mudava permanentemente de posição na cama, ia desta para o sofá, saía deste para dar umas voltas pela sala, deitava-me na tijoleira dura e fria, voltava para o sofá e assim sucessivamente, como dizem os matemáticos quando se chateiam e resolvem acabar com as deduções.


Casmurro, como a maioria dos velhos a cuja classe, por estas e por outras, não me honro nada de pertencer, ainda nessa mesma manhã desci à praia onde tomei um banhito curto, para pouco depois, com os calções já quase secos, ir até ao familiar “Restaurante Bacalhau”, ali, muito bem plantado junto ao mar.


Mal sentado, sem nunca conseguir encontrar posição numa daquelas cadeiras de cores horríveis fornecidas pela Coca-Cola, lá fui comendo umas sardinhas assadas, miúdas como eu mais aprecio, acompanhadas com tirinhas também assadas de pimentos verdes e com batatinhas cozidas com a pele, sem apresentarem um só sinal de terem apanhado um murro.


O “Bacalhau” desde há muitos anos acolhe uma comunidade de veraneantes habituais que se foram fazendo amigos, todas as épocas implacavelmente um ano mais velhos. Lá aparecem e desaparecem também os turistas de ocasião, originários de várias partes do norte da Europa, que cá vêm, quase todos de bolsos praticamente vazios com uns trocos dispersos alojados muito bem lá no seu fundo, mitigar a fome, saciar a sede e apanhar todo o Sol que as raras nuvens não conseguem tapar.


Todos os conhecedores destas maleitas me diziam que devia tratar-se de uma ciática e muitos foram, quase todos para espanto meu, os que já tinham tido qualquer coisa do género. Uns e outros auguravam que eu ia gramar uma boa pastilha e davam sentenças que me aconselhavam as coisas mais antagónicas: uns diziam para pôr sacos bem frios de gelo nas costas, outros que tais sacos fossem de água muito bem quente. Atarantado com tantas e variadas prescrições, mas sempre pronto a agarrar-me a qualquer panaceia milagrosa, pus em prática tudo o que me iam sugerindo.

 
Inclusive, enfaixei, com algum alívio inicial, uma cinta de varas, como aquelas que a minha mãe e as minhas tias mais bojudas usavam no princípio do século passado, e que, por precaução, um vizinho amigo, muito achacado a dores nas costas, sempre traz consigo e piedosamente me emprestou para, à experiência, dar umas voltinhas. Acabei por comprar uma algo mais moderna e sofisticada, mas não muito mais eficiente do que a que me fora emprestada.


Em Aljustrel, não muito longe dali, terra onde esse amigo nasceu e sempre viveu muito embrenhado em pirites, mora-lhe do outro lado da rua, um pouco acima da sua casa, um entendido que herdou do seu afamado pai o dom de curar ciáticas queimando um nervo qualquer das orelhas dos estóicos pacientes, independentemente do tamanho e formato de tais apêndices. Registei na minha já sobrecarregada agenda este mais que badalado tratamento, aposto que originário da fronteiriça vila de Barrancos, terra cheia de ancestrais tradições selváticas, apressadamente legalizadas “ad hoc” por governantes coxos e cobardolas.


Sei de gente que a tal tratamento recorreu com miraculoso sucesso. Na minha leiga opinião, tal sucesso resulta de um muito bem engendrado e propagandeado embuste: a dor da ferroada sentida na orelha é de tal ordem que o doente, a ela agarrado e aos berros, tudo o mais esquece, inclusive aquilo que ali o levou, logo se julgando miraculosamente curado.


Mas, cada dia que passava a coisa ia-se agravando, e as noites em claro cada vez se tornavam mais longas e tormentosas.


A meio de uma dessas infernais noitadas, decidi ir logo pela manhãzinha pedir socorro ao Hospital de Faro. Do que eu me havia de lembrar e onde me fui meter!


Cheguei, depois de trinta tormentosos quilómetros, calcorreados na tristemente célebre estrada n.º 125, uma conhecida rua de comércio onde há de tudo à venda. A estrada n.º 125 é uma espécie de via-sacra que atravessa o Algarve de barlavento até sotavento, ao lado da SCUT do Infante que todos, mesmo os transmontanos que nunca viram uma estrada, em sua homenagem, andamos a pagar. Nessa conhecida rua muito comprida, não acaba um dia em que no seu negro asfalto estiquem o pernil uns tantos mártires inocentes mais uns quantos bárbaros pecadores.


As constantes e desesperadoras paragens obrigavam-me, com uma frequência que me pareceu mais exagerada que o habitual, a usar a malvada embraiagem, nesse dia mais pesada que chumbo.


O Hospital de Faro estava pejado de carros e, àquela hora do dia, nem uma nesga havia dentro dos seus muros para qualquer doente poder estacionar. Um vigilante contratado a uma empresa de segurança qualquer, ao ver na minha cara tanta amargura estampada, deduziu que devia ser eu o doente e piedosamente permitiu que deixasse ali mesmo o carro mal estacionado, junto ao local onde exercia a sua actividade reguladora. Bem-haja!


As viaturas ali empilhadas deviam pertencer a médicos, aos agora também licenciados enfermeiros e a todos os restantes auxiliares de saúde, pela certa também gente em qualquer coisa encanudada. Nesse dia, para desgraça minha, nem faltaram ao serviço nem fizeram uma justa greve, que se lixem os doentes. Muita desta dedicada gente começa o seu dia indo direitinha ao bar tomar o primeiro dos muitos cafés que hão-de vir a tomar em mais uma extenuante jornada a aturar doentes para, já mais reconfortados, ingressarem a tagarelar pelos corredores em passo molengão nos seus postos chamados de trabalho onde os esperam os tais intrusos que são aqueles queixinhas piegas que nem uma simples dor de corno em casa conseguem tratar.


Havia na Urgência uma ampla sala com muitas cadeiras que deviam ser novas, pois, estranhamente, se apresentavam ainda em muito bom estado. Todas estavam viradas para uma minúscula televisão, pendurada lá muito em cima na parede, a que ninguém ligava uma peva, a não ser uma reduzida franja de doentes que, pela não cara, deviam ser mentais.


Em todos os recantos dos nossos hospitais, serviços de saúde e outros locais onde nos fazem o favor de tratar das maleitas, há sempre pelo menos uma televisão. Se o serviço é público, todos gramam o Goucha vestido de palhaço rico; se é uma clínica privada de preço médio aparece a Fátima Lopes com aquela cara que Deus na sua imensa bondade lhe pôs em cima dos ombros com um pescoço no meio.


Se nos atrevemos a entrar numa clínica privada do tipo esfoliante, ou seja, das que nos levam couro e cabelo, temos fatalmente a SIC Notícias. A SIC Notícias dá um certo ar intelectual compatível com os honorários que, no fim da consulta, à saída e já com o médico muito bem fechado por dentro, uma menina toda de branco, com voz muito doce, nos segreda, com um leve sorriso a entreabrir-se, o valor da suculenta maquia, enquanto vai atendendo pelo telefone, em voz também muito melíflua e quente, doentes tesos, desesperados por tanto sofrerem em público, e outros mais abastados que se podem dar ao luxo de se tratarem em privado, sem terem de levantar-se às quatro ou cinco da manhã.


Em nenhum lugar de espera se ouve o que os parodiantes televisivos estão para ali a dizer. As palavras atravessam de lado a lado doentes e acompanhantes e ninguém está com a menor pachorra para levantar os não olhos, por mais que uns segundos, para ver aquela plêiade de artistas e convidados. No caso da RTP, é figura de proa um cançonetista e dançarino que é padre por vocação e que por divina premonição, foi baptizado com o muito bem ajustado nome de Borga. A este jovial eclesiástico só deve restar tempo para celebrar pela noite dentro animadas novenas, ao som excitado do órgão, acompanhado por uma ou duas boas violas baixas.


Quando, aqui há uns tempos, fui aconselhado pela minha médica de família a fazer uma endoscopia, numa clínica privada de Portalegre, tive a graça de ver o Goucha muito bem enfiado num fato cor-de-rosa todo florido que lhe ficava tão bem, tão bem, como a mim ficou o traje de Santo Antoninho com que fui vestido em miúdo na procissão dos Senhor dos Aflitos, em Valadares, ao passo solene e comovente do toque de caixa da Banda de Coimbrões. Esta conhecida banda era então regida pelo maestro Salgueiral, um extraordinário e venerável carola.


Coimbrões é um lugar da vasta freguesia de Santa Marinha do concelho de Vila Nova de Gaia, freguesia que mais tarde se auto proclamou capital do Vinho do Porto, por ser lá em baixo, junto ao rio, que tratam e guardam a pinga feita de uvas colhidas e pisadas lá em cima, nas encostas Douro por homens em pé descalço com as ceroulas todas arregaçadas. 

Mas, desta vez, o Goucha, sempre com os seus lindos óculos e a arreganhar aqueles seus muito suspeitos não dentes, tão alvos, entroncados e bem alinhados eles se apresentam, berrava tão exageradamente, que era impossível aos pacientes que aguardavam a sua vez trocar as habituais conversas mornas onde se derramam queixumes e se diz mal, em tom um pouco mais quente, não apenas do estado deplorável da Saúde, mas também das outras coisas insalubres em que o Estado, useiro e vezeiro, mete a sua desajeitada mão.

Meu Deus, onde eu já ia!


Em certa ocasião, passou apressadamente pela sala de espera uma jovem auxiliar em serviço naquela área. Ensurdecido pelo Goucha e seus acompanhantes, levantei-me, travei-a e pedi-lhe muito rente ao ouvido se fazia o favor de pôr o som da TV um bocadinho mais baixo para eu poder dizer, sem ter de usar um funil, umas coisas à minha mulher. Esta, que sempre me acompanha nestas andanças enfermais, felizmente, ouve bastante bem, mas, claro, tudo tem os seus limites. Muito gentil e sorridente, a jovem respondeu-me, sem conseguir emitir um som audível, usando apenas gestos graciosos e sorridentes esgares, que tal não podia fazer, porque a televisão estava, com ordens lá de dentro, deliberadamente no máximo para que não se pudesse ouvir cá fora a gritaria e o alarido enjoativo dos vómitos profundos que vinham do interior da sala endoscópica, soltados pelos cagarolas em fase de endoscopiação.


Eu estava quase na altura de entrar e, apesar de sempre ter sido um tipo muito franzino, sou nestas coisas uma pessoa anormalmente valente. Mas, desta vez, perante tal cenário, hesitei entre confirmar se tinha alguma coisa errada na zona estomacal ou se era preferível continuar de vez em quando a engasgar-me e a regurgitar os cibos que não conseguem entrar afoitamente no estômago e se ficam pelo meio do caminho, ou me sobem amargamente, já meio digeridos, até à boca. Fui o herói do dia, disse-me com grande espanto a tal mocinha, elogiando-me vivamente por eu ter sido o único daquela manhã que engoliu a sonda sem tugir nem mugir, como quem estivesse a sugar por uma palhinha flexível dois golos um tanto apertados de um pirolito enlatado. Se todos fossem como eu, o Goucha podia ali falar mais baixo e a sala de espera ser um local de confraternização razoavelmente tranquilo.


Confirmou-se a suspeita da minha médica de família. Eu tenho uma hérnia no hiato esofágico, o que, a somar à discal que me apareceu depois, faz duas hérnias, embora distintas, mas não muito distantes geograficamente uma da outra. Uma fartura.


Os médicos, mais para fazerem render o peixe do que para trocarem, humana e caritativamente, as voltas aos doentes, são muito engenhosos com os nomes que dão às mais comezinhas maleitas, como é o caso das cefaleias e outras eias do dia a dia. Aquela do hiato vai-me ficar, não apenas a deslizar à entrada do estômago, mas muito mais acima, bem gravada na memória. O meu maior e justificado receio é o de começar a ter outro tipo de hiatos que me façam esquecer não só o esofágico, mas outros mais impiedosos que me inibam de os poder vir narrar.

 
Feito este breve hiato, salvo seja, retomo o assunto que me trouxe aqui. Estávamos, se ainda se recordam, na sala de espera da urgência do Hospital de Faro.


Pouco tempo depois de chegar fui me inscrever, dando os meus dados pessoais e “espere aí na sala até ser chamado; e para não andar sempre a vir aqui por dá cá aquela palha, modere os seus impulsos e deite para cá sete euros e cinquenta cêntimos”. Lá caíram estes num choco e lúgubre tilintar no fundo longínquo dos emagrecidos cofres do Estado.


De cócoras, de pé, inclinado, muito mal sentado ou a caminhar pela sala, a certa altura, com um assustador choque, creio mesmo que cheguei a corar, ouvi o meu nome ecoar na sala.
Mas não ia ser visto por um médico a sério, daqueles que trazem um estetoscópio ornamental pendurado ao pescoço, como usavam os seus velhos antepassados que mandavam repetidamente dizer trinta e três, trinta e três, enquanto encostavam uma rodela metálica muito fria no peito e costas dos doentes.


Ia sim, antes de mais, ser avaliado num local escuso e esconso por um senhor enfadado e ensonado, todo à paisana e com barba de dois dias, que me aguardava sentado em frente a um diminuta mesinha. Disse-me, sem um remoto sorriso, mas também, valha a verdade, sem nunca me insultar ou ofender, que me sentasse, o que eu fiz com uma grande vontade de começar a uivar caninamente. Sem muita conversa e muito distraído, num eficiente “é sempre a aviar”, deu-me uma tirinha de plástico verde para eu enfiar num pulso. Tudo parecido com o que fazem no Algarve alguns hotéis rascas de três estrelas aos turistas de pacote, tesos, avarentos e muito esfomeados que saem lá de longe das suas chuvosas terras frias, parcas de sol e calor, com tudo pago e direito a aquecer o estômago, comendo e bebendo a qualquer hora do dia e à descrição. Distraídos muitos deles, especialmente os de raça ariana, levam precavidamente para os quartos pães e pacotinhos de tudo o que podem apanhar a jeito, não vá vir por aí mais uma guerra, daquelas grandes, como eles sempre tanto gostaram.


Segundo o douto critério do triador, que naquela escuridão nem sequer podia ver que eu estava assustadoramente esverdeado, o meu caso era dos que podiam muito bem esperar. Estava feita a revolucionária Triagem de Manchester, onde o gado é classificado a olho, como acontece nalguns matadouros onde quem tria é um qualquer magarefe de bata branca nojenta, toda borrada de sangue.


Fiquei ao princípio muito contente com a pulseira verde que me calhou, mas depois de ter lido num vistoso painel ali patente para impressionar a malta, em letra muito gorda, a palavra Manchester esmoreci um tanto. Aí se explicava, em letra bastante mais magra, aos utentes que sabiam ler o significado das cores das pulseiras. A cor verde - pouco urgente - que me coube em sorte previa uma espera de cerca 120 minutos.

A minha paciência, como nunca, esgotava-se muito mais veloz que o tempo. Ainda não haviam passado mais que 10 longos minutos após a dita triagem e já eu, ansioso, resolvia sondar um outro vigilante contratado sobre o andamento dos trabalhos e as perspectivas de ser atendido antes de cair inteirinho a rebolar-me pelo chão. Com tantos amarelos que estão hoje por aí espalhados, sentenciou ele, o senhor não vai esperar menos de dez a onze horas. Disse-me isto em voz sussurrada, do tipo “não me comprometa”, apoiado no seu experimentado olho ultra clínico que se está nas tintas para o revolucionário método que veio de Manchester.


Bem eu gostaria de saber a que horas da noite, na minha abençoada ausência, se ouviu naquela sala mais uma vez o meu arrevesado nome e fui chamado para a consulta marcada nessa inesquecível manhã de Julho de 2006 em que, decidido e a coxear, dali consegui escapar-me, pouco antes do meio-dia.


Antes de fugir, sem ter tempo de pensar na hipótese de reaver os meus amaldiçoados sete euros e meio, perguntei-lhe onde, em Faro, ficava uma clínica privada. Disse-me que havia uma já ali ao lado ao dobrar de não sei quantas esquinas. Dobrei-as todas e mais algumas sem todavia me perder e até arranjei nas cercanias da tal clínica um espaçoso lugar onde deixei o carro vergonhosa, mas justificadamente, muito mal estacionado.


Na tal clínica fiz a inscrição de pé, ao balcão como quem bebe um copo, mas não fui sujeito a qualquer triagem, e nem uma só vez ouvi falar na abominável palavra Manchester, até que, três ou quatro doentes depois, chegou a minha tão ansiada vez.


Expus as minhas lamúrias a um médico muito sereno, que me pediu respeitosamente para me deitar de barriga para cima numa marquesa ali presente. O tranquilo clínico, sem bigode e, de longe, com o cabelo muito mais bem pintado que o de Fernando Ruas, (aquele senhor dos municípios), pegou-me delicadamente pelos calcanhares dos meus melhores sapatos e levantou-me, uma após outra, cada perna sem que eu tivesse soltado sequer um ligeiro ai. Devia ser, como eu suspeitava, (eu toco de ouvido e sou um grande ignorante também nestas coisas), uma ligeira (sic) ciática. Antes de sair passei pela sala de tratamentos, onde uma senhora de bata branca me injectou a pé firme de enfiada duas drogas, servindo-se da mesma agulha que me havia espetado à socapa no sítio do costume.


Paguei muitíssimo mais que os miseráveis sete euros e meio públicos e saí coxeante à procura de uma farmácia para aviar o receituário. Nele constava o tão conhecido paracetemol com outro nome e mais uma outra coisa qualquer anti-inflamatória. A farmácia estava estrategicamente mesmo ali a uns metros e a farmacêutica, pessoa muito alegre e comunicativa, ao ver na receita a minha morada, deve ter concluído que eu devia ser um alentejano relativamente abastado. Recomendou-me vivamente que tomasse a tal coisa daninha logo após a ceia para que os efeitos nas paredes do estômago não fossem tão nefastos e a perfuração não se produzisse logo à primeira toma.


Bem, como diria a coçar muito ao de leve a pálpebra superior esquerda o versátil Mário Soares quando se perde um pouco nas suas fantasias, a coisa não resultou e de tudo isto, felizmente, não apareceram efeitos colaterais, pelo menos que eu até hoje tenha detectado.


Regressei a casa (mais trinta km) e fui, apesar das dores, a manquejar lá baixo à praia para me enfiar no Bacalhau, desta vez para comer umas bem apaladadas amêijoas quase ocas que acompanhei com nacos de pão de torresmos bem embebidos no suculento molho de coentros muito cheirosos e fresquinhos.


No Bacalhau, um bom amigo que nunca sai de dentro de água, a não ser para ali ir almoçar com toda a família, aconselhou-me a fazer acupunctura em Albufeira, onde havia um bem conhecido acupunctor a quem eu há muito sabia, ele e a família recorrem quase diariamente por tudo e por nada, sempre com o mais espectacular sucesso: paralisia facial, dores nos joelhos e tornozelos, depressão, problemas de erecção, espinhela caída, verrugas, quistos, etc.


E no dia seguinte lá estava eu, em boxers de marca da mais fina popelina, indecorosamente deitado, de barriga para baixo, em cima de uma marquesa com um bem dimensionado hiato oval onde os pacientes podem enfiar a cabeça para respirar, enquanto, durante as cerca de duas horas que dura a sessão, vão olhando o chão e apreciando as esguias pernas de aço muito bem perfilado da referida marquesa.


O acupunctor enfiava-me, com gestos rápidos, firmes e aparentemente certeiros, desde a nádega esquerda e pela perna do mesmo lado abaixo, quase até ao calcanhar, uma espécie de farpas muito aguçadas que não eram mais que uma porrada de finas agulhas sem buraco.


Aplicava-me ainda uma série de ventosas feitas de troços de canas com um nó numa das extremidades. Tudo me leva a crer que as canas sejam originárias da China, embora sejam cá conhecidas pelo nome de canas da Índia. O acupunctor fazia-lhes o vácuo, queimando álcool no seu interior (isto deduzi eu pelo cheiro, porque a minha posição, de umbigo para baixo, não me permitia ver nada do que se passava na retaguarda) e em golpes lestos e firmes de mágico experimentado, colocava-as em alguns pontos nevrálgicos que são um dos segredos da arte que é o seu ganha-pão.


Em certa altura, estava eu deitado em cima da marquesa, ouvi cair a rolar pelo chão qualquer coisa que não consegui ver. Quando veio a assistente, que percorria os quartos onde estavam os demais acupuncturandos, esta logo me serenou, dizendo que tinha sido uma ventosa que se havia soltado, mas que tal não tinha importância. Confesso que, perante esta falta de importância, perdi um pouco de confiança no tratamento. Será que tanto faz mais ventosa menos ventosa como também é indiferente que seja mais agulha menos agulha?


Uma certa vez durante o tratamento, numa nádega minha, salvo erro a direita, senti uma fortíssima caloraça acompanhada de um despropositado cheirinho a leitão a ser assado no forno que me veio ao nariz. Julguei, a princípio, que tal fazia parte daquele tratamento oriental, que já tem mais de cinco mil anos com excelentes provas dadas, como me dizia repetidamente o simpático acupunctor. Cientificamente deduzi, pela forma como ele fazia o vácuo nas ventosas, que tinha sido uma golfada de álcool flamejante que se havia derramado por acidente no meu delicado e virginal traseiro.


Fui lá três vezes, infelizmente, sem qualquer sucesso. Trinta euros por sessão, incluindo cinco duma injecção de Voltarene, não foi caro, mas fica para outra coisa e para outra vez, oxalá que não.


Foi então, que depois de mais uma eternidade de dores permanentes, resolvi acabar com essas “férias” algarvias e regressar a Portalegre onde tenho a certa distância, mas em frente à casa onde moro, um hospital que vi construir, desde as fundações até ao telhado, quarenta e tal anos atrás, com a Urgência muito bem voltada para a minha janela da sala de estar.


A construção do hospital demorou cerca de três anos a realizar-se num local fulgurantemente escolhido pelo então venerando chefe de Estado, o Presidente Américo Thomaz. Após um grande estouro com fogo de artifício que ocorreu numas festas da vizinha vila de Castelo de Vide, e que matou e feriu não sei quanta gente, não havia um hospital nem capaz nem à mão para acolher e tratar tanta gente. Creio que ainda hoje não há e que, pelo andar da carruagem, tão cedo tal venha a acontecer Oh Elvas, Oh Elvas, Badajoz à vista.


Faça-se um hospital, impôs magnânimo, com voz baça e embargada, o bom do Thomaz que tinha sido em tempos um bom almirante de voz firme um nadinha mais clara. Com estampada comoção, num gesto largo, apontou, com um olho a piscar e o dedo indicador a tremer, um local muito mal definido na encosta da serra onde havia de ser, e foi, “urgentemente” erguido um hospital. Logo ali, foi entusiasticamente aplaudido e bajulado com vivas exaltados e patrióticos não só a ele, mas a Salazar, Salazar, Salazar e ao Estado Novo. Mal alguém pensava, que de velho e de podre, tudo havia de ir por água suja abaixo para engrossar as lamas de um futuro pântano muito mal cheiroso onde agora nos espanejamos sem tanga nem vergonha.


Aqui há uns anos, desculpem, mas já agora acrescento mais este pormenor, alguém resolveu melhorar o Serviço de Urgência. A remodelação, depois de longa e muita assustadora martelada de bota abaixo/bota acima, levou muito mais tempo a ser feita do que todo o grande edifício levou a construir, trinta e tal anos atrás, após aquela enérgica e corajosa decisão tomada por Américo de Deus Rodrigues Thomaz.


Claro que agora a Urgência está outra coisa. Tem algumas portas de vidro das que abrem enigmaticamente sem ninguém lhes tocar, tem evidentemente uma televisão sempre ligada na TVI e tem outras benfeitorias mais, a que agora acrescentaram para as triagens um sítio muitíssimo mais digno que o inóspito covil onde fui atendido no Hospital de Faro. No de Portalegre, um enfermeiro (não trazia estetoscópio ao pescoço) todo de branco vestido a rigor, e instalado numa salinha bastante decente e bem iluminada, vejam lá, faz as tais impressionantes triagens de Manchester!


Mas, a entrada dos sinistrados e dos doentes acamados, a maioria deles gente velha, ou que o parece ser, com caras cinzentas muito encovadas, continua, como antes acontecia, a fazer-se pela mesma porta por onde entra toda a gente mais os sinistrados aos nacos e a jorrar sangue, proporcionando um medonho espectáculo, mais ao morto do que ao vivo, aos que sentados, à espera da sua vez, estão voltados para o corredor de passagem. Fica todavia no ar um novo tema para desenvolverem e passarem mais entretidos os resto do tempo que falta para serem atendidos. Lindo serviço de que o pobre do Thomaz não teve a mínima culpa! Aliás, a verdade seja dita, Américo Thomaz, como venerando Chefe de Estado, nunca teve culpa de nada.


No dia em que, regressado das tais “férias”, recorri a este hospital, na sala de Urgência os profissionais calejados andavam, e ainda bem que sim, bem dispostas, como que indiferentes às dores muito bem estampadas, por exemplo, na minha lata sofredora. Ai deles e dos doentes se assim não fosse e todos andassem pelos cantos a chorar e a limpar as lágrimas disfarçadamente.


O simpático médico que me atendeu vem, como outros vêm, uma vez por semana de Lisboa a Portalegre fazer um dia de urgência, creio que não por serem apenas uns bons samaritanos, mas para ganharem mais umas razoáveis coroas, comer migas, sopa de feijão com couve, ensopado de borrego e respirar melhores ares. Mandou-me fazer lá dentro uma radiografia à coluna onde não encontrou, ou parece que não soube encontrar, nada de anormal. Lá me voltou a receitar outro analgésico qualquer mais um outro anti-inflamatório também qualquer, e dentro de quinze dias (estávamos em Julho) já vai estar fino para poder ir dar o tal passeiozinho que tem aprazado para Setembro.


Três dias de tratamento bastaram para ver que estávamos parados a fazer a cova no mesmo sítio, isto é, a perder tempo muito mal perdido e, pior que isso, o resto da minha quase esgotada paciência.


Em voz sussurrada, um enfermeiro amigo, que num Domingo me aplicou uma injecção no Centro de Saúde de Portalegre, disse-me que se eu pudesse, saísse “disto” muito depressa e fosse mas é para Lisboa. E foi assim que me escapei para o Porto, onde tenho asilo vitalício, com consulta marcada para um neurocirurgião que me foi recomendado por uma médica minha amiga, vizinha de longa data que conheço de pequenina.


Lá fui, à hora marcada, ao neurocirurgião com consultório numa clínica privada onde ele faz uns ganchos para ajudar a encher as amplas meias que usa nos pés. Chegou, só um niquinho atrasado, o que não é muito normal nos médicos comuns, e eu tive tempo de topar lá no alto duma parede da sala de espera a Sic Notícias que ninguém via nem queria ver. As cadeiras, como as portas, eram pretas e muito modernaças e, para quem não estivesse quieto, como era o meu caso, emitiam uns sons comprometedores que me obrigavam a reajustar constantemente a posição. Eu bem queria passar despercebido, mas, como não arranjava essa posição, fazia todo o tipo de movimentos que faziam a minha ergonómica IKEA matraquear indecentemente.


Lembro-me, oh se lembro!, de que por trás de mim, pendurado na parede, estava um quadro a óleo de grossa moldura que mostrava, mais uma vez, o Porto visto de Gaia, do outro lado do rio. Assim que tentei encostar a cabeça na parede bati em cheio na tela, mais ou menos no sítio onde fica Miragaia. Algo comprometido, afastei-me da parede um pouco para não voltar a atingir a pintura. Quando voltei a reclinar-me dei com a nuca no duro da moldura, sem pestanejar ou soltar um ai. Afastei-me disfarçadamente mais um pouco, arrastando comigo a engenhosa cadeira. Entretanto, lá chegou a minha vez, sem eu nunca ter conseguido bater com a cabeça directamente na parede, que era, desde que comecei a ter aquelas dores, o que mais me apetecia fazer, mas bem de frente com a testa, estivesse eu onde estivesse.


Então, que o traz cá, senhor engenheiro? – Perguntou-me o médico após os cumprimentos usuais. Engenheiro, como é que o senhor doutor sabe que eu sou engenheiro? Inquiri, intrigado. Respondeu ele: Eu mando perguntar sempre a profissão dos meus clientes porque para esta minha especialidade, tal informação é muito importante. Não me perguntou se nos meus tempos livres eu jogava ténis, praticava golfe, jogava a malha, cavava a horta e me curvava para apanhar pedras soltas ou retirar ervas daninhas.


Como os seus colegas, mandou-me pôr de costas em cima duma marquesa (ei-la) e lá repetiu o ritual do levanta pernas. Com uma agulha picou-me os pés através das minhas peúgas lavadas feitas de fio da Escócia reforçadas no calcanhar.


Saí delicadamente de cima da marquesa e fomos para a mesa do consultório: vai ter de fazer uma ressonância magnética (RM) e uma radiografia feita de pé (RFDP). Receitou-me uma única injecção (cortisona?) para levar quando chegasse a Valadares. Fui apanhá-la a casa da Zulmirinha que ma deu de pé e também me vendeu meio cento de pencas para plantar no quintal. Paguei ao médico 80 euros e à Zulmirinha 2, fora o que lhe dei pelas pencas.


Lá fui fazer a RM, enfiado de papo para o ar num tubo oco de pequeno diâmetro interior, onde muitos barrigudos ou gente com outro tipo de protuberâncias não podem, de certeza, conseguir entrar. Antes de me deitar no tabuleiro e enfiar lá dentro, a jovem assistente perguntou-me que música gostava de ouvir numa reduzida lista verbal que me sugeriu. Recusei com firmeza os Xutos e Pontapés e aceitei de bom grado ouvir os De Vangelis.


Levei na mão um botão de campainha de alarme, não fosse ver-me à rasca lá dentro da cápsula e ter de pedir para ser ejectado em pleno voo.


Mal tinham suavemente entrado os De Vangelis, logo saíram pois nunca mais os pude ouvir. Sem demoras, começaram ali mesmo umas ruidosas obras. Devia tratar-se de um gigantesco trabalho de restauro onde foi adoptada a rebitagem como no original, em detrimento da mais moderna e expedita técnica da soldadura. Mas, nada disso. A RM é assim e faz toda aquela assustadora chinfrineira.


Durante cerca de vinte minutos estive ali enfiado e foi com muito alívio que de tal me libertei. Já cá fora, perguntei à assistente se não havia centrifugação. Se calhar cansada de tantas vezes ouvir esta piadinha fácil, de imediato me respondeu à letra que o programa que havia seleccionado era o destinado a roupa delicada. Se antes nunca alguém lhe perguntou tal coisa, aqui ficam os meus parabéns pelo seu veloz sentido de humor. Se já outros lhe puseram a mesma questão, veja lá como ambos somos tão engraçadinhos!


A seguir fui introduzido num antro muito soturno para fazer a tal radiografia de pé (RFDP). Foi felizmente tudo muito rápido. Conclui que tenho muito menos cagaço de estar no escuro das salas das radiografias do que estar enclausurado de papo para ao ar a fazer ressonâncias magnéticas (RM). Aquele tipo de radiografia, para além de ser feito de pé, requer que o doente tome algumas posições baléticas, nem a todos acessíveis. Saí da câmara escura, despedi-me da senhora já na sua meia-idade e não tive coragem de fazer qualquer tipo de humor, não fosse ela, farta de ouvir graças iguais, devolver-me de pronto uma do tipo chapa 1 retirada do seu arquivo.


Passados três dias, com a RM, a RFDP e uma CF (carta fechada), que eu, claro, previamente abri, voltei ao neurocirurgião para mostrar as vistas do interior e ouvir o seu veredicto. Há de facto uma hérnia discal e podemos em minha opinião seguir dois caminhos, disse ele: fazer umas não sei quantas sessões de fisioterapia de resultados incertos ou recorrer a uma cirurgia.


Pesados os prós e os contras, depois de lhe perguntar o preço que tudo me ia custar, cerca de seis mil euros, decidi-me pela cirurgia. Estava farto de empates. Quando pode ser? Perguntei. Amanhã dia 2 de Agosto, no Hospital da Lapa às 16:00. Apareça lá às 9 da manhã em jejum para a preparação: análises ao sangue, radiografia ao tórax, electrocardiograma, medições de tensão, etc., etc.
Desta vez, baixou a parada e paguei só cinquenta euros. Pensei logo que já se começava a sentir o efeito Sócrates no preço das consultas.


Abençoado Sócrates!


Quando cheguei a casa, no dia 1 de Agosto, telefonei ao António, um grande amigo de infância que é um distinto especialista noutra área da medicina, a comunicar-lhe da minha rápida decisão. “O´pá, e tu aceitaste, assim, sem mais nem menos? Que garantias te deu ele? Tu tens boas informações do tipo?” O António estava todo ralado e fulo. Ralhou-me, exasperado, com uma grande vontade de sair de casa a pé para me vir bater. Não é preciso ser arguto nem muito inteligente para compreender a razão da sua inquietação.
Eu tinha boas informações, mas fui logo confirmá-las, voltando a falar com a Rosarinho, a médica amiga de quem já falei e que mo aconselhou.


O programa foi zelosamente preparado e religiosamente cumprido pelo cirurgião e eram 16:00 quando duas senhoras embatadas me vieram empurrar na minha cama articulada, também provida de rodas, até à sala de operações. Tudo muito divertido, inclusive a operação a que assisti todo anestesiado (eu não disse extasiado) e de costas, suponho eu.


Passei três noites, quase podia dizer que muito agradáveis, no Hospital da Lapa, onde eu e a minha mulher fomos por todos impecavelmente tratados.


Voltei lá passados uns dias para mudar o penso e depois, passados outros, para tirar os 15 agrafes, uma espécie de minúsculos ganchos duplos articulados. A cicatriz ficou impecável. O cirurgião, que muito profissionalmente sempre apareceu enquanto estive internado, marcou o dia 7 de Setembro, depois das suas férias, para eu me apresentar no seu consultório da Rua da Saudade.


E aparecemos, ele moreno e sadio, eu mais esbranquiçado e ainda muito combalido.
Depois do conhecido ritual das pernas, chamou-me a atenção para o manuseamento de cargas, para o uso comedido de esforços e aconselhou-me a dar uns passeios, pelo menos com a duração de meia hora, duas a três vezes por semana, para recuperar massa muscular perdida. E deu-me ALTA!


Pusemo-nos de pé, despedimo-nos, abraçamo-nos, desejei-lhe os maiores êxitos e que ganhasse muito dinheiro. Fazendo um pouco de humor negro, que ele não soube iluminar, pedi em voz alta a Deus que para essa fortuna não tivesse eu de voltar a contribuir. Fechou-se por dentro todo sorridente. Comecei a ficar com quase saudades, que iam aumentando à medida que o ia vendo desaparecer pela frincha cada vez mais estreita da porta. 


São cem euros, saudades não.


Porra para o simplex do Sócrates!


Apeteceu-me bater-lhe … à porta do gabinete para lhe encher a cabeça de gelatina amarela e ir sentá-lo inteirinho a balouçar-se naquela mesma IKEA do meu passado sofrimento.


Ia já a sair, quando um estranho impulso me obrigou a voltar atrás. Sem ver ninguém e a todos atropelando, dirigi-me como um autómato para o quadro onde tempos atrás tinha batido, por duas vezes, involuntariamente com a cabeça.


Da pintura desprendia-se agora um cheiro desagradável e viam-se sinais ainda muito frescos de que alguém a tinha acabado de borrar numa larga faixa, que vinha desde lá de cima da Sé até cá baixo ao rio. Vândalos!


Saí apressadamente.


O sempre incansável e bem organizado formigueiro que, depois da operação, me ficou a percorrer o pé esquerdo, nas cercanias do respectivo dedo grande, movia-se agora tão atarantado, que foi com um sapato na mão que entrei no carro que me havia de transportar desde a Rua da Saudade, no Porto, até a minha casa, em Valadares.
 

 



*** 

              Acharam graça?

              Eu não, embora muio me apeteça rir.

 

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