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Dá dor

 

Quando começaram a escavar furiosamente numa rotunda normalíssima que existia junto a dois postos abastecedores de combustíveis que ficam, lado a lado, a sul da cidade, ingénuo, pensei: apareceu petróleo em Portalegre, vamos passar a dar cartas ao mundo!

 

O Iraque, a Arábia Saudita e toda aqueles países petrolíferos onde tudo anda ao tiro e à tapona vão finalmente acalmar os ânimos com a nossa concorrência.

 

Logo, caí em mim, e disse com os meus botões: mas se aquela gente anda toda sempre ao sopapo por causa do petróleo, não será que vamos nesta pacífica região passar também a andar à cacetada ao pontapé e aos murros?

 

Apavorei-me com tão negra perspectiva e juro que rezei baixinho para que, ali por baixo, no subsolo, não passasse mais que um riacho de águas contaminadas, com um acentuado cheirinho a petróleo. Mais vale continuar a ser remediado como até aqui do que viver em permanente desassossego, do tipo que se vive lá para o Médio Oriente, tão rico neste maná.

 

Demorou imenso a escavação e andei todo esse tempo em pulgas, a fazer figas para que não aparecesse ali esse maldito ouro a que chamam negro.

 

Desolado, vi, em dada altura, começarem a erguer grossas paredes de cimento armado até aos dentes e logo deduzi que se devia ter confirmado a existência do melhor tipo de crude e que se preparavam as bases para suportar a enorme estação de bombagem que o havia de fazer brotar a rodos. Imaginei logo magotes de voluntariosos americanos a virem instalar e explorar sofisticadas refinarias de última geração.

 

Acompanhei dias seguidos os trabalhos que pareciam não mais ter fim. A coisa começou a ter formas tão estranhas e imponentes que, sempre com os meus botões, dizia eu, se for petróleo, esta deve ser uma das maiores e melhores jazidas do mundo. Lá se vai a tanga, lá se vai o défice, lá se vão todos os infortúnios que nos vêm batendo à porta e entrado pela casa dentro! E vamos ter gasolina ao preço da chuva!

 

Já imaginava ver G.W. Bush, de surpresa, a visitar Portalegre para uma curta visita, carregado de apetitosos perus de plástico, para confortar o seu vasto contingente de compatriotas que cá assentara arraiais para fins, como sempre, pacíficos e apaziguadores.

Há dias, quando recebi na caixa do correio um detalhado e inspirado folheto com as instruções a anunciar-me que aquilo tudo era para fazer um monumento ao dador de sangue, exultei e fui a correr para a tal rotunda, de braço estendido com a manga arregaçada, agarrado ao referido folheto.

 

Pude, enfim, compreender todo aquele aparato, e orgulhar-me da grandiosidade e finalidade da obra, que me dizem se pode avistar facilmente de Elvas, de Badajoz e até mesmo, já muito lá para cima, da Cova da Beira.

 

Em Portalegre gastaram-se, muito bem gastos, umas boas centenas de milhares de euros num majestoso e esbelto monumento, com repuxos, pombinhas e outros belos elementos decorativos, que vai trazer à cidade gente curiosa de toda a parte, continuando a sua pacata população a viver, como até aqui, na abençoada paz com que o Senhor a quis magnanimamente contemplar.

 

O meu receio é que os automobilistas mais interessados em coisas de arte contemporânea, para bem apreciarem o monumento, dêem lentamente voltas e mais voltas à rotunda que possam provocar longos engarrafamentos, bloqueando completamente aquele importante acesso à cidade.

 

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