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Dizer e fazer

 

Diz-se que há gente para tudo, quando se quer significar que alguém é capaz de fazer as coisas mais estranhas, mirabolantes e, em geral, de baixo teor em dignidade. Aquele "para tudo" traz muita água no bico e tem asas bastante largas.


Dizer que alguém é de todo, também não abona muito em favor do sujeito da oração, a não ser que ele não passe de uma criança saudavelmente traquinas. Exceptuando estes, os "para tudo" e os "de todo", há o resto da gente, de cujos tipos eu cito alguns exemplos de todos bem conhecidos.


Há o tipo, de acção ou teimoso, que diz e faz; há o, matreiro ou modesto, que faz mas não diz; há aquele, tímido ou calaceiro, que nem diz nem faz; há o, impostor ou mentiroso, que diz mas não faz; e há o fingidor que só faz que faz.


Também há a gente, gabarola ou intrujona, que diz que fez e não fez e a, cobarde ou modesta, que fez o que não diz. De quase todos os tipos acima referidos, como podem experimentar, há também os vice-versa.


Existem ainda os célebres empatas, que não fazem nem deixam fazer, e os pretensiosos e inaptos, que nada fazem e dizem, em tom reprovado, que, se fossem eles a fazer, teriam feito doutra maneira, evidentemente, melhor.


Neste dizer e fazer há muitas mais combinações possíveis que qualificam muitos mais grupos, entre os quais lá aparece a tal gente para tudo.


Entre todos, os que verdadeiramente aprecio são os que dizem e fazem, mesmo quando o resultado do seu labor não sai inteiramente perfeito, mas tem a possibilidade de, a tempo, com pequenos retoques, ser corrigido e melhorado. Estes que dizem e fazem, como norma, também ouvem.


Tenho, palavra que tenho, desmesurado pavor dos que, por inépcia muito agarrada à sua espessa camada de avidez, só fazem mamarrachos, sejam eles de que natureza for, uma casa, um livro, um poema ou uma canção.


Mas se um aberrante monstro de betão se impõe e nos indispõe com os seus trinta e muitos andares, um livro rasca de vinte páginas, um poema reles de quatro tiras ou uma canção pífia, com música e letra de embrutecer podem ter efeitos muito mais perniciosos do que o tal aborto, residencial ou para escritórios, que nos fere a vista e rouba o sol.


As monstruosidades que vêm destruindo, rapidamente e sem piedade, as nossas terras, mesmo as mais recatadas e pequeninas, e as fazem todas desoladoramente iguais, ainda podem, um dia, com o bom senso e a coragem de alguém, vir a ser implodidas ou arrasadas. Mas o tal livro, aquele poema ou a canção, aparentemente inofensivos, vão minando e deixam sulcos muito mais profundos que as fundações daquele mostrengo, por cujas portas e janelas, mesmo feias e inestéticas, sempre passa alguma luz e se vai renovando o ar.


Se o povo acordar e deixar de se entreter e alienar com estas coisinhas tipo droga leve que, por todos os lados e meios, sub-repticiamente, o atraem, agridem e deformam, vão ver que, também, os desvarios dos que são de todo e para tudo, um dia hão-de vir a acabar.

Tenhamos muita fé, para que destes delírios nem sequer venham a restar as pegadas ainda frescas que marcam tristemente esta nossa nova era dos excelentíssimos dinossauros de betão.

 

 

 

*** O que por aí vai, meu Deus!

 

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