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Era uma vez...

 

Quantas histórias ouvi contar que começavam sempre, sempre, assim! Quase todas acabavam bem e, quando tal não sucedia, é porque a história tinha um fundo moral que quem no-la contava queria transmitir. (Lembram-se da sorte do João Ratão?).

 

 

O tempo dessas outras histórias passou e, então, como se quisessem que eu não crescesse, outras histórias me vão contando, para me adormecerem, tentando embalar-me suavemente para que eu ande, aparentemente acordado, num mundo de sonhos e não veja as realidades.

 

 

Vou resistindo como posso mas, outros, menos calejados, mais incautos ou mais sonolentos, deixam-se embalar e sonham, sonham, até acordarem um dia, com outros, e às vezes os mesmos, a contar-lhes exactamente as mesmas histórias.

 

 

Quando vamos nós todos estar acordados? Quando vamos adormecer conscientes, sem nos termos deixado embalar?

 

 

Eu também quero contar histórias. Chegou a minha vez, caramba!
Não para adormecer os outros, mas para dizer que estou acordado, aproveitando a graça de ainda estar vivo.

 

As minhas histórias começam como as da meninice, apenas com palavras adaptadas às novas circunstâncias.

 

Histórias curtas com ideias compridas. Muitas, muitas histórias que nunca acabarei de contar. Não têm elas poesia nem encanto. Nenhuma acaba bem. Todos as contam, a porteira, o senhorio, o carteiro, o vizinho debaixo, o tio que vive na província. Todos, mas todos, e em toda a parte! Na rua, no café, no bingo, nos matraquilhos. Em tudo o que é sítio, como agora se diz nas telenovelas brasileiras.

 

Ouçam agora, deixem-me só contar uma meia dúzia:

 

_ São muitas as vezes que vejo gente esmolar pelas ruas e outros sem coragem para os olhar.

 

_ São muitas as vezes que ouço falar em ferozes guerras e vejo outros a viver numa santa paz.

 

_ São muitas as vezes que me dizem que isto vai bem, enquanto outros dizem que isto está de cada vez pior.

 

_ São muitas as vezes que ouço uns queixarem-se que as estradas só têm buracos e outros afirmarem que os buracos têm poucas estradas.

 

_ São muitas as vezes que se ordenam rigorosos inquéritos, enquanto ninguém faz inquéritos aos que os mandam fazer.

 

São muitas as vezes? São, são. Mas, ainda por cima, são muitas as coisas.

 

Quando luzirá o dia em que vou contar uma história começada como quando eu era menino? “Era uma vez que eram muitas as vezes ..."

 

 

 

 

*** O jornal "O DIA" era dos muito poucos jornais que tinham a coragem de se  insurgir contras os lamentáveis desmandos dos oportunistas do 25 de Abril  de 1974. Por isso, era considerado um pasquim fascista. Já estávamos nós em 1990!

 

 

 

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