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Faladrar

 

Gosto muito de animais, como quase todas as pessoas consideradas gente normal, e em particular do cão.

 

Amigo do seu amigo e até dos seus menos amigos, companheiro de muitas horas, inteligente, fiel, meigo, leal, dedicado, o cão tem um sem número de atributos que deviam fazer corar muita gente, se esse tipo de gente fosse corável.

 

Há imensas raças de cães e até há a raça dos cães sem raça, fruto de amores fortuitos onde a luxúria canina não atende a classes, cor, tamanho ou “pedigree”.

A degradação das raças fez passar a moda do Pastor Alemão e não foram poucos os que foram abandonadas longe de casa, uns dias antes da família ir descansada para férias.

   

Muita gente fina, ornamenta a sua casa, o seu jardim e até o seu 5º andar com cães de boa raça que custam umas lautas massas no stand e escoam rios de dinheiro para sustentar.

Muitos destes, nomeadamente os espécimes mais avantajados, são usados no banco de trás do automóvel, onde, através dum vidro lateral aberto, exibem, em ioiô, a sua também avantajada língua.

 

Se tivesse que escolher, não saberia decidir-me entre um matulão de carne e osso que mostra a língua, e um de porcelana ou peluche que vai pousado na prateleira traseira a abanar a cabeça, ao sabor do ritmo e amplitude dos buracos da estrada.  

 

Há quem, não tendo um cão de marca, nessa prateleira ponha revistas científicas, uma ou duas raquetes de ténis ou um chapéu de palha.

 

Confesso que não gosto muito, ou mesmo nada, dos cães minúsculos que ladram insistentemente com voz esganiçada e me tentam morder os calcanhares. Não sei bem se não gosto deles porque são assim, ou se não gosto porque são assado e andam acompanhados por quem lhes veste um casaquinho sem mangas e os trás ao colo ou pela trela.  

 

Tenho uma predilecção especial pelo vulgar cão rafeiro, filho de pais incógnitos e sem pontinha de sangue azul. O rafeiro é um cão sem peneiras, de baixa estatura que, mesmo que tenha dono, nunca usa coleira e nem a primeira classe canina chega a frequentar.

 

Vadia e entretém-se pelas ruas e vielas, mais por estas que por aquelas, alça a perna em tudo o que está espetado no chão, fareja todos os seus camaradas de boa-vai-ela e com eles troca, focinho a focinho, impressões cujo teor me intriga.  

  

É normalmente refilão e quezilento, rosna, ladra, engalfinha-se em lutas acaloradas, e é muito raro vê-lo fugir de rabo caído e orelha murcha.

 

Ladra aos foguetes, às bandas de música e aos maltrapilhos, rosna aos carteiros e corre atrás de todas as bicicletas a pedal, corre ao lado dos carros e esfalfa-se ingloriamente atrás das irritantes motorizadas.

 

A sorte do cão rafeiro está muito ligada à sorte do homem.  

Os homens sem sorte têm sorte de cão, os que se esgadanham a trabalhar, para viver mal ou mesmo na miséria, levam vida de cão, os espertos que vivem à custa dos outros ferram o cão.

 

O que será para os cães um cão com sorte de homem? E um cão que leva uma vida de homem? E um cão que ferra o homem?

 

Às vezes pergunto-me se é o homem que vive num mundo cão, ou se é o cão que vive num mundo homem.

 

Seja qual for a resposta, tenho a certeza que qualquer deles, cão ou homem, é um mundo louco!

 

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