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Falha de luz

 

Encontrei um muito curioso e actual livro auxiliar do ensino de uma importante área da ciência, destinado a alunos do 12º ano (repito por extenso e sublinho: décimo segundo ano) do Ensino Secundário.

 É certamente um trabalho da autoria de professores, no mínimo gente licenciada, que muito gostaria eu de recomendar vivamente não aos alunos, a quem ele prioritariamente se destina, mas aos pedagogos, que dele podem sacar importantes, embora muito acabrunhadoras, conclusões. Por razões éticas, não cito o nome da obra nem nomeio os seu autores, para que sobre estes não caia qualquer estigma que possa prejudicar a sua carreira profissional. Até porque a culpa não é inteiramente sua, mas do sistema em que se deixaram embrenhar e de que também são vítimas.

Tão preciosa obra que foi elaborada, antes de tudo, para uso dos estudantes que necessitam de uma ajuda naquela específica matéria, acaba por ser um valioso instrumento de trabalho para os mais atentos que se interessam e estão envolvidos nesta questão essencial que é o ensino, razão de grandes paixões, bem alto proclamadas mas, infelizmente, nunca correspondidas nem consagradas.

Como quase todos, o livro em questão, aparentemente, tem na essência todos os ingredientes para ser um bom auxiliar para quem tem de aprender a resolver problemas daquela área da ciência. É, como tantos os outros que por aí enxameiam as livrarias, atraente, está bem impresso, foi feito em bom papel, não é dissuasoramente grande, tem letra bem legível, mostra belos esquemas, exibe coloridas figurinhas e, se não tiver erros na matéria, (lagarto, lagarto!), tudo bem.

Mas, atenção, pedagogos nossos!, logo a abrir, uma só página vos basta para poderem fazer uma rigorosa e rápida avaliação da verdadeira catástrofe que nos atingiu, sem necessidade de perderem tempo com congressos, colóquios, inquéritos, sondagens, estatísticas, enfim, sem lançarem mão de nenhum dos usuais instrumentos do imenso arsenal posto à vossa disposição.


Essa tal página é dedicada a um Glossário. O diagnóstico preocupante e o prognóstico aterrador que este permite fazer sobre o nível de conhecimentos de português, a nossa língua materna, dos alunos do 12º ano do Ensino Secundário, gente quase a entrar no chamado Ensino Superior, é de fazer cair um santo de qualquer altar.

E que augurar perante o resultado do trabalho de quem, na melhor das intenções, se abalançou a fazer um tal glossário que mais se parece com um anedotário de almanaque de cordel, onde se fala de horóscopos, de luas e da melhor altura do ano para plantar batatas e penca tronchuda?! Não vai cair um santo, nem vão cair só dois, vai com fragor ruir, inteirinha, a igreja toda.

Eu, que não sou linguista e que até dou o meu traiçoeiro errito, há muito que não via tanta calinada e barbaridade condensada em tão reduzido espaço de papel. As definições são mais complicadas que as coisas que se pretende definir. Os verbos não concordam no número, na pessoa, no modo, nem no tempo. As definições chegam mesmo a estar erradas.

O glossarista admite, com as suas fundadas razões, (por disso ter experiência docente e por similar experiência ter vivido quando foi discente), que são palavras (difíceis) dignas de entrar na sua selecção as seguintes quinze (segurem-se bem que elas aí vão, por ordem alfabética, sem mais avisos): Calcule; Classifique; Deduza; Defina; Descreva; Determine; Enuncie; Estabeleça; Identifique; Indique; Justifique; Mostre; Prove; Qual; Seleccione.

Para não abusar do espaço, e só para que não digam que sou um desalmado traidor e um falso patriota que tudo bota abaixo, vejam estes quatro adoráveis exemplos que retirei, "ipsis verbis", do tal "Glossário de termos usados em questões de … ":



1. Calcule: determinar grandeza (s) sendo necessário a apresentação sequencial de todos os raciocínios e cálculos efectuados.

2. Classifique: indicar a veracidade de uma aferição, qualificar, indicar a classe ou grupo, etc.

3. Determine: o mesmo que calcule.

4. Qual: escolher entre várias opções ou grandezas, a que corresponde à correcta (ou errada), a que traduz uma determinada lei ou fenómeno, etc.


Um mimo. Este "Qual", é de arrasar e, só ele, pode levar ao delírio, mesmo os mais fortes e calejados nestas coisas.

Então, quem não sabe o significado de coisas tão rasteiras como estas, tem pachorra para ir ler uma lenga-lenga daquelas a que chamam, em letra alta e gorda, glossário? Por amor de Deus, não "glossem" comigo!

Passados os primeiros momentos de compreensível estupefacção, eu proponho ao leitor, já minimamente refeito e bem sentado numa boa cadeira de braços, que:

 

Calcule o que, fatalmente, nos vai acontecer.

 

Classifique, muito a sério, esta pegada brincadeira.

 

Deduza o que me vai na alma e na de outros como eu.

 

Defina esta pobreza sem limites.

 

Descreva as causas do nosso angustioso drama.

 

Determine o estado deplorável a que tudo isto chegou.

 

Enuncie a razão desta e de outras desgraças que lhe venham à mente.

 

Estabeleça comparações, se conseguir encontrar coisas comparáveis.

 

Identifique culpados e, só para passar o tempo, faça queixa às autoridades (in)competentes.

 

Indique outros caminhos, mesmo que mais tortuosos, a ver se isto ainda se pode endireitar, um bocadinho que seja.

 

Justifique por que acha que isto não pode continuar assim.

 

Mostre a sua mais viva indignação pelo que se está a passar.

 

Prove que, assim, isto nunca mais lá vai.

Qual o sítio seguro, (pergunta-me, aflito, o leitor), para onde acho que deve fugir, no caso de isto continuar como está? Seleccione, (sugiro-lhe eu), um local onde ninguém sequer sonhe em que país e em que mundo a sua infeliz mãe o deu às trevas, por, nesta velha casa a ameaçar ruína onde nascemos, já há demasiado tempo estar sempre a falhar a luz e nem um escorrido coto de vela nos restar.

 

 

 

 

*** O nível deplorável a que o nosso Ensino chegou!

 

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