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Fechado por dentro

 

Tenho um pequeno negócio de miudezas no rés-do-chão da casa onde vivo. O negócio não ia mal, mas agora vai de vento em popa. Foi só uma questão de pensar um bocadinho e proceder a uma remodelação na minha organização interna. Não tenho um centésimo do trabalho, nem um milésimo dos problemas.

Fechei uns dias para obras. Eliminei o velho balcão corrido, onde me esfalfava e esbarrava todo o santo dia com os três empregados, naquele esgotante corre-corre, de cá para lá e de lá para cá, e no permanente sobe e desce dos escadotes para chegar às prateleiras de cima. Sem balcão, para que serviam agora os empregados? Não tive outro remédio senão despedi-los, apesar de tantos e tantos anos de dedicação.

Com um subsídio qualquer, desses que a União Europeia ainda dá, montei um novo tipo de prateleiras, pus umas fortes grades na porta de entrada e uma cobertura cheia de luzinhas lá fora no passeio para chamar à atenção e abrigar a clientela.

Com as grades bem fechadas à chave e a cadeado, fechei-me muito bem por dentro e esperei pelos clientes sentado numa cadeira rotativa elevatória, com o eixo centrado nas novas prateleiras que engendrei, quase semicirculares, voltadas para a rua. Era só carregar num botão e eu, daí, chegaria a tudo, sem esforço e, com rapidez, através das grades, entregava as miudezas e recebia os pagamentos.

A princípio as pessoas afrouxavam, olhavam-me com ares muito estranhos, eu sorria comercialmente, mas logo estugavam o passo, julgando que era eu que estava à venda. Ninguém me queria. Estive assim uns dias e nem uma só pessoa teve a curiosidade de perguntar o meu preço.

Muitos passantes caridosos atiravam-me moedas de um e, às vezes, dois cêntimos, que eu logo registava e metia na caixa. Havia mesmo quem, por ser mais generoso ou não conhecer bem o valor das moedas, desse um e até dois euros. A minha mulher nem acreditava, quando eu, à noite, depois de ter corrido a espessa persiana exterior e posto mais dois cadeados nas grades interiores, subia as escadas e lhe mostrava o volumoso apuro do dia, sacos e sacos de moedas de baixo e até médio calibre.

Finalmente, um dia, uma antiga cliente parou intrigada; cumprimentámo-nos, sorri-lhe com intimidade, falámo-nos e lá me comprou ela umas coisitas, dando-me os parabéns e desejando-me muita sorte no negócio. A coisa espalhou-se e, daí em diante, comecei a vender bem, continuando a cair moedas da gente supersticiosa e da clemente mais distraída.

Vieram a correr as televisões todas, cansadas das intermináveis escandaleiras que assolam o país, a clientela passou a aparecer aos magotes para comprar de tudo, só para se meter à frente das câmaras a dar as mais variadas opiniões (do tipo "eu acho bem", "foi uma boa ideia", "é pena não haver mais iniciativas destas", etc. etc.), em todos os canais e repetidos a toda a hora.

Só peço aos céus que a polícia com todo este alarido mediático, confundida e mal informada, desta vez não actue e se lembre de me vir "libertar".

 

 

 

*** É moda estudantes (trabalhadores) fecharem as escolas (as fábricas) por fora a cadeado.

 

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