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FINICISA

CENAS AVULSAS

 

 

  A ARTE E A FINICISA

 

Sempre considerei como um dever basilar na missão de quem tenha um lugar de chefia humanizar o seu local de trabalho, nele criando um ambiente acolhedor, proporcionando todos os meios para que aí se respire um ar que a todos faça sentir num meio hospitaleiro e civilizado. Contribuir com a minha quota-parte para que os menos sensíveis fossem, aos poucos, corrigindo comportamentos e melhorando hábitos, foi uma das minhas metas primordiais. 

 

Esse esforço permanente sempre me orientou, por gosto meu e também porque, em casa e profissionalmente, para tal fui educado. Sei que por muitos não fui compreendido, principalmente pelos os que ainda estavam habituados aos tempos em que era norma pintar tudo de cinzento (o chamado “cinzento fábrica”) para não se ver a porcaria, nem haver que perder tempo a fazer limpezas.

 

Ter tudo emporcalhado ainda hoje é, em muitos sítios, um “bom” sinal que a muitos faz sentir que tudo marcha em bom ritmo que não deixa tempo para pensar nem agir de modo a que tudo esteja razoavelmente limpo Uma fábrica, por definição, tinha de ser um sítio sujo, senão imundo, porque quanto mais suja ela estivesse mais eficiente ela devia ser. Não haver tempo para “luxos” era sinal de que o negócio estava a dar.

 

Já não falo na questão fundamental da segurança que nunca pode ser atingida se tudo não estiver bem concebido funcionalmente, desimpedido, arrumado nos seus lugares e limpo. Também nem vale a pena falar no papel importantíssimo que um local agradável tem na eficiência do trabalho e no gosto de quem o realiza.

 

 A arrumação, a limpeza, a iluminação, o conforto, juntamente com o ambiente de boas relações humanas, que todo o chefe tem por dever criar à sua volta, são pedras basilares para o sucesso de qualquer empresa. O ambiente de trabalho, onde contam primordialmente as pessoas, o meio que as rodeia, é um dos pontos fulcrais para o sucesso de qualquer empresa. Sem essas condições basilares, imensos tipos de entraves aparecem e dificilmente se atingem os objectivos a que nos propusemos.

Tal como acontece nas nossas casas, o desalinho e a desorganização afectam as relações entre os familiares por mais que eles se queiram e amigos sejam entre si.

 

Um meu bom amigo e leal colega, contou-me que um dia um indiano que nos visitou lhe disse que “num sítio assim eu era capaz de trabalhar mesmo que fosse de graça”. É um exagero que ilustra, em parte, o que eu quis dizer neste já longo preâmbulo. O ideal é que ele pudesse também poder ter dito que “num sítio assim e com gente assim eu era ….”  

 

Fica o preâmbulo por aqui.   

 

Vou agora contar o que, certa vez, me aconteceu quando, sem eu saber, a Finicisa estava a ser negociada para mudar para outras mãos.

 

Aproveitando as páginas de um lindo calendário que todos os anos uma empresa nos enviava, onde cada página reproduzia uma bela pintura de qualquer reputado autor, resolvi mandá-las emoldurar na nossa carpintaria para depois as pendurar pelos corredores insípidos e frios do edifício dos escritórios.

 

Prontos os quadros, com o carpinteiro fui escolher os locais onde ele com um preguinho os devia pendurar. Na sexta-feira dessa semana ficaram todos no sítio que escolhi, para satisfação de uns, espanto de uns tantos e incómodo de outros. Tudo isto era de esperar e natural.

 

Quando cheguei na segunda-feira seguinte ao trabalho, logo vi toda aquela quadralhada amontoada ostensivamente sobre o assento dum dos sofás onde, à entrada do escritório, os visitantes esperavam até serem por alguém recebidos.

 

Nesse fim-de-semana, tinha certamente lá andado gente importante que não gostava destas coisas. As pessoas importantes também têm direito a não gostar de tudo, e a não serem bem-educadas, pensei eu.

 

Porque se fossem um bocadinho educadas vinham falar comigo e expor, cara a cara, as sua razões. Não vieram e não demorou muito até que me pusessem sobre a minha secretária uma carta fechada. Pensei logo em Salazar e nos seus métodos de despedir ministros de quem não gostava. O importante remetente, não era Salazar. Distraído e esquecido, eu já nem me lembrava que este figurão já há muito tinha batido as botas. Felizmente, eu nem secretário de estado era daquele governo com o seu ar de provisório.

 

A carta, que eu, mesmo assim, li a tremer de medo, vinha duma conhecida figurinha de passar (e de passagem) e dizia-me, sem a ter mandado, como devia, ao meu superior directo, para eu mandar arrumar as “estampas” (sic) e dizer, ao seu adjunto, quanto elas nos tinham custado. Como quem diz: vais pagá-las.

 

Como já disse no preâmbulo, por gostar de ter tudo bem arrumado, e não querer fazer ondas, logo mandei recolher o monte das “estampas” ao lugar da sua confecção, a nossa oficina de carpintaria.

 

Para responder ao segundo quesito, fiz umas contas, sendo nelas o mais rigoroso possível, e deu-me: tanto para molduras, tanto para vidros, tantinho para os suportes, mais outro tantinho para a mão-de-obra, mais as estampas grátis, é igual a:

Total: 36 000$00 (trinta e seis mil escudos).

 

Ofereci-me gostosamente para pagar do meu bolso tal quantia, mas não mais me disseram nada e estive ainda uns tempos à espera que me mandassem a conta a casa.

 

Mandei também tirar os pregos, mas disse para não taparem um único dos buracos por eles deixados. Porquê deixar os buracos, perguntam-me, curiosos, os que ainda me estão a ler?

 

Eu decidi fazer ali mesmo, nos mesmos precisos locais, uma discreta exposição cujo convite na altura mandei distribuir e que já a seguir reproduzo:

 

****

 

                          CONVITE 

 

Perante o sucesso da exposição temporária de cromos,

vimos com a maior alegria participar a todos os amantes da arte

a inauguração da exposição permanente de naturezas mortas,

expostas exactamente nos locais da anterior.

Trata-se de obras do pintor naïf SILVINO que, utilizando técnicas

simples de aguarela, onde predomina o branco tartaruga, nos traz,

uma vez mais, o fulgor da sua arte e a magia envolvente dos seus

matizes, numa torrente estonteante e fremente de turbilhões

audaciosos e trepidantes, com o movimento alucinante das coisas estáticas.  

       

 

                                                                                                                                  ****                                              

                              

*Notas muito interessantes acerca do que para trás ficou dito

 

·        A fábrica ia mudar de mãos, (disso só havia rumores), e naquele

fim-de-semana tenho como certo que andaram por lá os putativos compradores

acompanhados dos autênticos vendedores mais os seus sequazes.

 

·       As tais estampas foram seleccionadas e retiradas por mim de calendários

do putativo comprador, vejam lá, a … Hoechst AG.

 

·        O comprador deixou de ser putativo e comprou mesmo a Finicisa.

 

·        O novo dono, que fora putativo, pouco depois de assentar ideias e arraiais,

mandou logo colocar nas mesmas paredes outros quadros com ar muito científico,

que nada tinham a ver com este nosso ramo da indústria. Era só para impressionar,

mas era bem melhor que ter as paredes nuas.

 

·        Tomei a liberdade de dar as estampas a quem mas pediu para pendurar nas suas casas.

·        Contribuí assim para repartir 36 000$00 de cultura estampada por várias casas de Portalegre.

 

·        Silvino,

não quero aqui esquecê-lo,

não era  apenas um pintor da construção civil extremamente eficiente mas,

principalmente, um bom amigo, creio que de toda a gente que com ele de perto conviveu.

 

  

Novembro de 2003

 

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