top of page

Fugas à sevilhana

 

No dia vinte e quatro de Abril de 1974, fui ao jantar de despedida de solteiro de um velho amigo, companheiro de estúrdia e de trabalho. Sei que regressei a casa já com o novo dia a despontar e que não consegui enfiar a chave na fechadura, depois de muitas infrutíferas tentativas. Estava eu nisto, quando, por milagre, a porta se abriu e eu pude entrar. Alguém, àquela hora matutina, saiu para o seu trabalho e eu pude vencer a porta do prédio e subir ao meu apartamento e nele entrar, desta vez, inexplicavelmente, sem problemas com a introdução da chave.


Caí pesado na cama, por cima da roupa e completamente vestido sem, tão-pouco, ter tirado os sapatos novos que tanto me atormentavam. O tirano despertador de corda, pouco depois, cumpriu a sua ingrata missão matinal, retinindo a sua odiosa campainha, indiferente ao meu sono que se aprofundava vertiginosamente. Estendi o braço tacteante para o abafar, o que consegui, fazendo-o cair ao chão e rolar, já mudo e quedo mas ainda a tiquetaquear, para debaixo da cama. Nunca mais, desde aí, o sua irritante trinado se ouviu, mas continuou a dizer-me as horas, embora com muito menos precisão.


Acordei, não sei quando, com tudo a rodar à minha volta e eu, ao mesmo tempo, a rodar à volta de tudo, com a cabeça atordoada a estalar e a boca áspera e empedernida.


Levantei-me no outro dia, que eu julgava ser o vinte e cinco, mas, vim depois a saber, era já o vinte e seis. Devo ter comido de mais e bebido muito acima dos 0,5 mg que a lei actual permite aos condutores matar ou ser mortos legalmente.


Encontrei o nubente à entrada do emprego cinco minutos antes das nove, nossa hora de entrada. Também vinha com ares da ressaca e tanto ou mais combalido que eu.


Seriam dez da manhã e o chefe da repartição chamou-me ao seu gabinete. Queria saber porque tinha faltado no dia anterior. Como, para mim, o dia anterior era o vinte e quatro, disse-lhe, peremptório e convictamente, que não tinha faltado e passara o dia a conferir facturas e a telefonar a fornecedores. Engoliu sem se entalar, mas com alguma dificuldade.


Eram aí onze e chamou o promitente noivo. À mesma pergunta obteve idêntica resposta, adaptada às funções do inquirido. Voltou a engolir, pigarreou e a coisa foi, já com muito mais dificuldade, para baixo.


Para tirar teimas e confirmar a sua eficiência, chamou, pouco depois, um relapso mandrião que ele iria jurar estivera presente no tal dia vinte e cinco. Apanhado de surpresa, não teve tempo de arranjar uma mentira e logo confessou que tinha faltado para andar em todas as manifestações de praças e ruas que pôde apanhar. A coisa não foi para baixo e o inquirido levou uma repreensão registada e, no fim do mês, foi-lhe descontado o dia.


Baralhado e inseguro, o chefe da repartição teve de aceitar todas as explicações como boas e reconhecer que, naquele revolucionário dia, não estivera devidamente atento.


Como se depreende, eu e o nubente, para quem o vinte e cinco de Abril de 1974 não existiu, recebemos, fora os descontos, o vencimento por inteiro e continuando o nosso cadastro sem uma mácula.


Passados tantos anos, veio-me isto à mente, quando ouvi aquela história de uns tantos aficionados que, largando tudo e todos, foram, em nome da Pátria, a Sevilha incentivar o Porto para que este acrescentasse mais um troféu ao seu e nosso glorioso historial.


Tal como me aconteceu, só os que disseram a verdade tiveram falta injustificada e viram descontado o dia. Aos trânsfugas da verdade, que deviam saber melhor que eu que o vinte e cinco de Abril de facto existiu, vai-lhes ser pago o dia por inteiro (mais as alcavalas) e, às tantas, verem registado mais um louvor no seu virginal cadastro.
 

 

 

 

*** Nem todos os deputados que temos (a mais) são assim, mas que há muitos (de mais) desta apurada estirpe, há.

 

bottom of page