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Furanos, Siclanos e Beltratos**

 

Um professor meu, assistente da área das matemáticas, desenvolvia numa aula, já lá vão séculos e não se falava em poluição, qualquer tema que eu já não recordo nem tem, para o caso, interesse mencionar.

 

 Fazia ele a prelecção, numa sala em silêncio, virado para o quadro escrevendo a giz e falando simultaneamente, sem voltar a cabeça, para a audiência de cerca de trinta e poucos alunos sentados nas suas costas. Um destes, absorto em mais altos problemas, distraído e ausente ou, sei lá eu, se distraído por estar interessado, clicava a sua Parker, no meio do silêncio absorvente que reinava na aula, fazendo-lhe sair e entrar, sair e entrar, o arredondado bico.

 

 Sem se descoser, sem se voltar, sem interromper a exposição, sem mudar de tom e continuando a encher o quadro de fórmulas e deduções, foi dizendo... seno quadrado de alfa, mais co-seno de beta, ”está estatisticamente provado que em cada grupo de trinta pessoas há sempre, pelo menos, um idiota”, menos o integral da tangente de gama, etc., etc. A Parker distraída, perante os olhares e o movimento de sobrancelhas dos mais atentos, calou-se e a dedução chegou ao fim, ”quod erat demonstrandum”.

 

Vem isto a propósito de quê? 

 

Nem mais, da co-incineração, seja ela muito ou pouco dedicada, um problema que devia ser do seu foro íntimo, mas que, desafortunadamente, também é do meu e do dos demais corroídos e pacientes nossos compatriotas.

 

 Em relação à memorável aula, só há uma ténue e subtil diferença que quero assinalar. É que, aqui, são muito mais de trinta professores, a clicar freneticamente Parkers, voltados para um único e já obtuso aluno que, de costas voltadas para eles (e para o quadro), bate desesperado com a cabeça na parede do fundo, cheio de ouvir falar alguns cultos Fulanos, um sem número de demagógicos Sicranos e hordas de ignorantes Beltranos.

 

 Numa atmosfera de cortar à faca, cada vez mais irrespirável, já louco com tanto barulho, com a testa rubra e já amolgada, espera ele que todos se entendam e lhe digam o que há-de fazer aos três quilos e meio de lixo que tem, já anos faz, no fundo do quintal dentro dum bidão bem tapado que se vem apodrecendo e, a toda a hora, ameaça romper-se.

 

 

 

 

*** O Professor António Andrade Guimarães, era na altura assistente da cadeira de Álgebra Superior regida pelo Professor doutor Arnaldo Madureira na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Homem de fino humor, como se pode deduzir. 

 

 

 

 

 

***No PÚBLICO, saiu com o título " Fulanos, Sicranos e Beltranos".

A minha gracinha não pegou.  

 

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