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Gatos e homens

 

Era um gato vulgar, pardo, igual a tantos outros que vemos por aí que, com poucos dias de vida, alguém, não sei se com coração ou sem ele, nos deixou à entrada da porta quando, já de malas feitas, nos preparávamos para sair de casa por uns largos dias.

 

Mal podia ainda aguentar-se nas patitas, pouco abria os olhos e miava desesperadamente, não sei se apenas com fome ou se, também, pela falta do calor materno. Sem termos a quem o deixar nem coragem para vê-lo ficar para ali abandonado, não tivemos outra solução que não fosse levá-lo connosco.

 

Fomos atrás buscar um pouco de leite e uma seringa descartável que por lá havia, para, pelo caminho, lhe darmos algo com que mitigasse a fome e fizesse compensar dos maus momentos por que devia ter passado.

 

Não foi fácil dar-lhe de beber com aquele biberão de recurso que encontrámos. Sofregamente, roía a dura ponta em vez de sugar o leite, cujo sabor lhe devia ser muito estranho e mesmo desagradável.

 

Concluímos, dias mais tarde, que ele, (que afinal era uma ela), o que queria realmente era comida, daquela a que nós chamamos comida de garfo. Devia, concluímos depois que, pela sua preferência de tipo de alimentação, já ter mais dias do que os que a princípio, pelo seu pequenino tamanho, avaliávamos pudesse ter.
 

Havia que dar-lhe um nome e, ainda durante a viajem, surgiram diversas sugestões. Venceu a da minha filha que quis que ela se chamasse Tina, em homenagem a Tina Turner, de quem sempre fomos admiradores. Foi sempre arisca a Tina para toda a gente. Mesmo aos que a afagavam arranhava ou mordia as mãos, sempre que desconfiava de algum gesto mais suspeito.

 

Começava a abanar o rabo, rosnava a seguir e, de orelhas muito baixas, praticamente coladas à cabeça, mordia com força, escapando-se, num pulo brusco, a correr para baixo ou para trás de qualquer coisa pouco acessível, nunca esquecendo de esconder bem o rabo.

 

Gostava muito da minha filha, que ela tomou como sua mãe adoptiva, a quem, com visível prazer, ia para o colo e deixava fazer carícias que retribuía com sonoros e arrastados ronrons.

 

 Mesmo nestas alturas, por vezes, inesperadamente, por qualquer malentendido, algo se passava por aquela cabeça e, até a ela, fazia a sua partida, fugindo a esconder-se algures da forma habitual.

 

Não se livrava, então, de uma surra, mas pouco tardava a voltar, já de orelha erguida, do esconderijo onde se acoitara, não creio que arrependida, mas sim completamente esquecida do incidente.

 

E se ainda não tinha levado a prometida surra, levava-a agora, certamente já sem saber o porquê do tardio castigo. Nestas alturas, a minha filha, zangada a sério, gritava-lhe: Tina Maria! Mesmo assim todos gostávamos dela e de a termos connosco, vivendo a sua vida de gato entrelaçada na nossa de gente.

Ainda há pouco brincara quando, quase de repente, a vimos, deitada sobre as patitas encolhidas, a respirar com muita dificuldade. Alguma pneumonia, pensámos nós. Assim passou aquela noite na sua cadeirinha preferida, julgo que sem nunca ter conseguido dormir. Noite muito má deve ter sido a sua, pouco melhor foi a nossa.

Na manhã seguinte, o veterinário, pelo seu arfar difícil e ruidoso, mesmo antes de a auscultar, logo opinou que devia ser coisa séria. Ficou lá em observação, fez radiografias e nesse mesmo dia, à tarde, quando a fomos ver e conhecer o diagnóstico, dormia anestesiada, aparentemente tranquila, na cestita onde a sua vida, difícil decisão a nossa, em breve iria acabar, cremos que sem muito mais ter sofrido.

Custou-nos muito desfazermo-nos dos seus dois pratitos, do seu caixotinho com areia, das três latas de comida que restaram. Vemos ainda vazios os lugares rotineiros onde ela procurava o seu conforto: onde batia o sol, a braseira, o "seu" sofá junto à televisão. Passados estes dias, ainda esperamos vê-la aparecer na cozinha à primeira batida na tábua, ou, disparada de rabo insuflado, vir dar fortes sapatadas no odiado aspirador, mal ele começa a sua ruidosa missão.

Toda a família a chorou com a mágoa de quem perde um familiar e os nossos amigos mais chegados, que sempre a viram junto a nós, algo de amável nos vieram dizer. Não houve sequer um dos que a tivessem conhecido, mesmo aqueles poucos que tinham razões, pelo seu feitio arisco, de a ela não se chegarem, que não tivesse deixado de manifestar o seu desgosto. Todos apareceram.

Ela, que tão independente e rebelde sempre foi e que eu sei que tinha ideias, (teria também ideais?), de todos teve uma palavra sentida. Digo, parafraseando o poeta, que morreu um gato como nós.

Quando desta vida partem homens dignos e bem vertebrados que não pensavam como nós, que tinham outras ideias e sonhavam outros ideais, bom era ver todos aparecerem, como se perdessem um amigo.

Alguns diriam que morreu alguém como nós, outros, se, fossem sinceros consigo próprios, reconheceriam que morreu alguém diferente, bastante melhor que eles.

 

 


*** Esta é uma história verdadeira : a Tina morreu e tivemos um enorme desgosto. Acompanhá-mo-la até ao fim e ainda hoje a lembramos.

 

*** Na mesma altura, morreu um homem digno, chamado João Amaral , que militou anos e anos num certo partido político que não só o ignorou na doença como o mesmo fez quando  ele deixou este estranho mundo dos vivos.

 

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