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Gente de sucesso

 

O Antero foi sempre um homem de acção e iniciativa, com ideias ousadas que muitos consideravam demasiado arriscadas para o seu arcaboiço. Nasceu pobre e ficou-se pela antiga quarta classe que havia lá na terra, o que, na época, dava direito a ficar a saber-se alguma coisa, inclusive a tabuada. Sempre por conta própria, ainda hoje, já entradote, trabalha, arrisca, empreende, tem por vezes alguma sorte, tem outras tantas os seus azares.

Foi sempre por todos considerado um homem digno, merecedor do dinheiro que possa amealhar, e ninguém, nem de longe, admite que tenha obtido qualquer provento à custa de negócios pouco claros; muito menos, pode alguém acusá-lo de ter ludibriado ou explorado quem quer que fosse.

A sua lida ocupa-o plenamente e quase jurava que, não tendo ele achaques de qualquer ordem, mesmo com uma má travesseira e um péssimo colchão, deve dormir sempre tranquilo, dum só sono e sempre virado para o mesmo lado.

Teve três filhos, todos eles rapazes, uma felicidade para o seu másculo interesse empresarial e menor sorte para o conjugal desconsolo da sua mulher, que sempre ansiou ter uma rapariga para com ela partilhar coisas de mulheres, ter uma companhia mais junto a si e quem a aliviasse um pouco nos afazeres do dia a dia.

Os moços, que daquela boa cepa saíram, seguiram-lhe as pisadas e, acabada a escola (agora já por lá havia o famoso nono ano e não sabiam a tabuada nem o que isso era)foram, como ele sempre ansiou, trabalhar a seu lado, até porque não tinham mais nem melhor para onde ir. Assim cresceu e se vai mantendo, aos soluços, a Antero & Filhos, Lda. Embora todos muito se esforcem e muito o mereçam, parece estar escrito que nunca hão-de passar daquela sua cepa, cuja tendência, apesar da firme estaca do trabalho, é de nunca deixar de ser torta.

Já o Catarino, seu único irmão meu contemporâneo e meu colega de carteira na escola primária, uns bons doze anos mais novo que ele, não foi homem de grandes audácias, embora de enormes astúcias. Dele lá anda, numa gaveta em casa do irmão, de cara imberbe e ar maroto, uma fotografia da primeira comunhão já muito desbotada e roída.

Mal, acabou a terceira, a saber umas coisas, (a tabuada uma delas), mas já farto de tanto estudo, teimou, teimou e logo quis deixara a terra para ir trabalhar para novos horizontes.

 

Foi o irmão, que não tendo conseguido convencê-lo a fazer a quarta, quem, junto de um próspero conterrâneo muito amigo seu, negociante de couros, o senhor Acácio Lopes, lhe arranjou na loja deste no Porto um emprego compatível com a idade e conhecimentos: marçano.

 

Topou a tudo, fez recados, carregou fardos, levou cachaços, fez a tropa e conheceu a mulher, que andava a servir numa casa ali para os lados da Pasteleira, com quem havia de casar e ter um filho. Ficou-se por ali a vida inteira, e, já promovido a homem de inteira confiança, sempre de lápis na orelha atrás do longo balcão de madeira com tampo de serventia, servia uma coriácea e farta clientela, ao lado do patrão, um solteirão empedernido dono e gerente da conceituada firma A. Lopes, Couros, Lda.

Catarino não teve cá fora actividades extra balcão que lhe gerassem mais proventos e levassem a ter, não se compreende muito bem como, (a mulher era um camafeu sem eiras nem leiras na sua terra), uma vida notoriamente regalada. Ignoro se ele dormia de um só sono ou se algo, (um mau colchão ou uma má travesseira não creio, porque tudo isso era do melhor), o fazia dar voltas na cama.

Fez uma espampanante vivenda, daquelas que têm muitos telhados, com lareira, piscina, grande garagem para três carros e enorme parabólica, e o filho, que andou na escola, muito contrariado, diga-se, até completar, muito aliviado, diga-se também, o nono ano obrigatório, saiu um grande madraço que nunca fez nada na vida a não ser gozá-la à grande e à francesa, sempre metido em carros de cores berrantes, muito compridos, largos e baixinhos, que lhe dava o pai.

Catarino ficou com a loja meio falida, (não se sabe como, sendo o senhor Lopes um homem tão meticuloso e moderado!), tirou o lápis da orelha, deu sociedade ao filho, e hoje a "Catarino`s-Peles Center", com muitas luzes daquelas pequeninas no tecto e chão flutuante, é o mais florescente e elegante estabelecimento do ramo em toda a cidade.

O senhor Acácio Lopes foi a enterrar na sexta-feira passada. Vivia só e apertado, no mesmo quarto alugado onde, soube-se agora, sempre viveu. Sem ter quem lhe pagasse o funeral, foi o Antero que, avisado do sucesso e muito contristado, veio lesto por aí abaixo assistir à cerimónia, quem, sem pestanejar, acabou por fechar contas.

Não entraram os outros sequer com um mísero cêntimo para as despesas, alegando que aquele avarento se encheu de ganhar dinheiro à sua custa e só não lhes tirou a própria pele porque não pode.

Foram acompanhá-lo, de óculos muito escuros com hastes muito largas, tendo cada um, com pontaria certeira, não sei bem adivinhar com que intenções, atirado o seu torrão para a cova, antes do pano final cair.

Entretanto, lá em cima, o sino, rachado de indignação, tocava desafinadas e graves badaladas.

 

 

 

 

 

*** Mais uma estória para a história da pulhice humana

 

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