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FINICISA,

Fibras Sintéticas, SARL (Volume II)

 

 

 A FINICISA, Fibras Sintéticas, SARL, é inaugurada oficialmente em 17 de Maio de 1966.

 

Vem o Senhor Presidente da República, o venerando Chefe de Estado Américo de Deus Rodrigues Thomaz, com a sua Mulher Gertrudes e alguma comitiva, como era, e ainda é, sempre de esperar.

 

O Primeiro-Ministro, ou melhor, o Presidente do Conselho da época, por qualquer razão, não veio. Admite-se que, na altura, tinha  o seu único par de botas pró sapateiro.

Vieram clientes prósperos de fábricas rentáveis, hoje quase todas falidas, senão encerradas; vieram clientes também prósperos de fábricas em decadência, que lá se foram aguentando, todos eles enchendo de cada vez  ainda mais o bolso; vieram amigos de ambos os lados da sociedade anglo-lusa e até fui eu que acabara de casar no premonitório dia 25 de Abril de 1966.

 

As senhoras acompanhavam os maridos e, como mandava a solenidade da ocasião, levavam chapéu. Arranjar um chapéu de senhora já não era tarefa fácil na altura, muito menos em curto prazo  e em Portalegre, num lugar onde ainda hoje predomina o boné nos homens e o lenço, com o chapéu preto do falecido Homem por cima, nas mulheres. Valeu-nos a sempre amorosa e sem preconceitos Lisdália que emprestou à minha recente Mulher, que ela conhecera  curtos dias antes, um que havia usado há pouco num casamento e estava novinho em folha. Admite-se que algumas senhoras presentes, que estiveram no mesmo casamento, dissessem para consigo, e quem sabe se entre si, já terem visto um chapéu igualzinho em qualquer cabeça conhecida, não sei bem onde.

 

Fazia um calor abrasador, anormal para Maio. Na enorme tenda improvisada, montaram-se à pressa chafarizes, tipo mijadela para o ar de menino maroto, para dar um ar de frescura ao ambiente, e espalharam-se ventoinhas por todos os cantos. As gordas pernas de D. Gertrudes Thomaz, estavam ainda mais entumecidas e os sapatos, para realçar a sua elegância, já de si dois números abaixo, cabiam-lhe mal nos pés, por natureza, também muito gorduchos.

 

Asseguro que a pobre senhora não tirou os sapatos debaixo da mesa por ter como certo que não mais os poderia voltar a calçar acabado o repasto. Pelo menos, no fim da festa, eu não a vi em meias, descalça, nem com os sapatos na mão.

Houve medalhas!

Havia, como hoje e sempre, medalhas nestas alturas, quase todas atribuídas com palmadas sonantes e hipócritas em costas onde apetece mas é dar uns belos murros. A dificuldade na altura foi arranjar medalháveis entre o pessoal. Ainda mal se conheciam as pessoas, não havia feitos nem de monta nem de meia monta, mas havia que distribuir um certo número delas por quem quer que fosse, segundo as instruções protocolares vindas de Lisboa: “Temos aqui seis medalhas. Arranjem-se!” E assim o Meira por ter bom porte, andar bem penteado e não ter ficha na PIDE, foi armado cavaleiro. Todos estes anos passados, eu daria ao Meira outra medalha pelo seu trato impecável, dedicação e extrema dignidade.

 

Também houve discursos, como ainda hoje continua a haver, recalcados doutros, gastos, velhacos, hipócritas, sem qualquer sentido, ignorados por todos e contra-indicados para qualquer digestão. Fazem efeito horas depois quando, já em casa, desapertadas as calças e tirada a gravata, se arrota estrondosamente à vontade e se vomitam camarões mal mastigados.

 

Não recordo o seu teor, mas asseguro que Américo Thomaz falou e leu de “improviso” o seu discurso. Sempre o trazia oculto na parte inferior do forro da gravata que lia, sub-repticiamente, desenrolando-o, fingindo olhar pró chão, com as mãos sob a curva da barriga, com as palmas voltadas para cima e com os dedos cruzados, à excepção dos polegares. Aliás, também não me lembro se adormeci logo que ele o tentou fazer. Mas, que falou, falou, falou e eu garanto que não disse nada e se bateram empolgadamente, bem de pé, muitas palmas e disse com voz velada mas bem audível ”muito bem, muito bem”! Disto tenho eu a certeza porque acordei estremunhado com aquela barulheira toda e um “muito bem” perdido a atingir-me em cheio a cabeça.

 

Em 1969 cresce a fábrica e vem o Ron Taylor. Traz um sobretudo a que falta um botão, o de cima. Admito, convicto, que o Ron tirava sempre o sobretudo antes de entrar em casa e o pendurava do avesso. A mulher, regalada no Estoril, nunca deu pela falta do raio do botão. O Ron também era muito bom tipo, trabalhador frenético, cumpridor e eficiente. Era simpático, mas por vezes um tanto coriáceo, bastante duro de roer.

 

Tive pena do David Baptista, da Isolcalor, uma firma de isolamentos térmicos, quando num Natal lhe deixou no gabinete da CMT (Casa do Mr Taylor) um inocente garrafão de tinto lá da terra. O Ron, sem lhe dizer palavra, que não seria entendido, nem usar gestos que podiam ser mal entendidos, veio a correr, bastante furioso, pedir-me, que lhe fosse dizer para retirar o tintol imediatamente do sítio onde o havia posto. Incorrupto sim, mas tanto não!

 

O David Baptista era um modesto e honesto empresário que trabalhava no duro junto aos seus operários, noite e dia se fosse preciso. Nunca lhe devolvi um cestinho de Natal que ele, todos os anos, tinha gosto em me levar a casa. Preferi ser corrompido a roubar-lhe esse prazer. Depois de os alemães e seus solícitos acólitos, me enxotarem sorridentemente da empresa, ainda me levou um a casa, como costumava fazer. Sem interesse! Só porque era, e é, um amigo reconhecido que julgava que eu lhe fazia algum favor em escolhê-lo pela sua capacidade de trabalho e o seu profissionalismo, sem enganar ninguém. A minha filha ainda pequenina, muito excitada, adorava desembrulhá-los e sempre deixámos para ela essa missão; tinha muito mais gosto nisso do que em comer as passas ou os chocolates da ”Regina” que lá vinham. Ia lá eu tirar esse prazer à Ivone!

 

A Profabril volta a colaborar. Um novo secador de polímero de leito fluido, uma nova fiação, uma nova banca de estiragem com rolos aquecidos a vapor, que nos deu cabo da cabeça e do resto do corpo. Era um protótipo que o Mike Pickard, sem maldade embora premeditadamente, ajudou a conceber numa altura em que o aborto não estava, nem seria tão cedo, despenalizado. E caíram-nos em cima do canastro as suas constantes vindas às boxes.

 As primeiras dores começaram quando, se verificou que a velocidade relativa entre os septetos de rolos não era constante, provocando variações no grau de estiragem da fibra. Um dos septetos era aleijadinho de nascença e tinha onze rolos, em vez dos sete da praxe. Era, em bom português, um undeceto, mas todos lhe chamavam também septeto. Só por aquele seu verdadeiro nome, avaliem o que dali podia sair.

 

Passávamos o dia sentados numa secretária, tipo escola primária da época, em frente à mesa de controlo, com uma mão ou as duas a segurar a cabeça, a olhar para o terrível indicador que demorava séculos a dar a disparatada e desoladora informação. Estávamos em Agosto. O calor e a humidade do local, mais o ruído, eram martirizantes. O sistema de comando que era hidráulico teve de sofrer alterações, adaptadas “ad hoc” pelo fabricante, para se poder produzir fibra considerada tragável.

 

 As segundas dores, também violentas, vieram quando se quis imprimir maior velocidade a essa famosa máquina e/ou engrossar o "tow" para produzir aquilo para que fora especificada. A embraiagem, com sons de dentadura postiça mal ajustada, não aguentava o esforço. Mordia-se toda e produzia um som parecido com o de castanholas muito bem  repenicadas. Procura-se afincadamente a razão da avaria, eléctrica? mecânica? a eterna cena do passa-culpas. Tudo em vão.

 

Na altura, já havia telex o que nos deu algum conforto e alguma rapidez de acção. Veio, a título provisório, por não haver para entrega a mais adequada, uma embraiagem de maior capacidade. A “adequada”, era monstruosa e nunca veio a ser usada, pois a provisória obstinadamente encheu-se de brios e aguentou a carga; teve os seus achaques, é certo, mas durou até que toda a banca descansou na paz ferrugenta do sucateiro, ternamente encostada à que esteve anos no armazém à espera de saltar da prateleira para o terreno de jogo.

 

Terceiras dores de cabeça: os rolos estiradores, quando aquecidos, oscilavam como pescoço de galinha a beber água, e os rolamentos duravam pouco mais de um dia, quando deveriam durar, pelo menos, uma década. Assim se andou até se reconhecer que se estava em face de um caso perdido. Um septeto sai de serviço, um rolo ou outro também e, por fim, todos os rolos não mais são aquecidos. A banca produziu muitas toneladas de fibra boa, com meia dúzia de rolos teimosos, até descer, desavergonhadamente, do seu pedestal. Fez umas coisas; fez o que pôde. Mas teimosamente, certa da sua razão, levou a sua avante e fez friamente o que quis.

 E assim, mais uma vez, uma montanha pariu um rato!

 

Em 1975 inicia-se um novo passo que vai ser em 1976 um novo e importante marco na vida da empresa.

Volta o Ron TayIor com o mesmo sobretudo e sem o mesmo botão. A mania que ele tinha de tirar o sobretudo antes de entrar em casa, porra!

 

Está cá o Mike Rowntree. Instalam-se duas linhas de produção de polímeros, base alimentadora da unidade de fibras que, no fluxo produtivo, lhe fica a jusante. Também aqui se instalam duas linhas de estiragem, com rolos aquecidos, robustas, cabeçudas, modernas, “alemonas”, com provas pacíficas dadas noutros sítios do globo.

 

Era o pós-revolução.

 

Vem aí o Verão Quente do PREC. Cheira a Vasco (Gonçalves) e a Otelo (Saraiva de Carvalho). Um cheiro pestilento de sanita imunda, toda entupida e a transbordar, anda nos ares.

 

O pessoal dos empreiteiros, emproado, quase todo originário da zona sul do Tejo, onde se começava logo ao pequeno-almoço a comer camarão gigante, lagosta larga e comprida e sapateira bojuda, é quem mais ordena. Invade abusivamente as nossas oficinas e insulta, de braço direito erguido e punho bem cerrado, porque o nosso pessoal que não quer aderir às suas greves. De passagem, chamam-lhes “amarelos”, sendo eles vermelhos e a maioria, como afinal se provou, furta tudo e, em especial, cores. Escrevem, em letras gordas, com os Esses e os Enes ao contrário, nos depósitos do “tankfarm” os seus manifestos revolucionários. Toda a gente usa barbas, toca viola e canta abaixo isto, acima aquilo. Espalham panfletos, pintam paredes, borram tudo o que podem.

 

Mas, também alguns dos nossos, os de melhor olfacto, começam a sentir o cheiro longínquo do marisco. Nas nossas forças aparecem alguns revolucionários que, a troco dum prato de lentilhas, mudam de camisa. Promovem-se, tacticamente, alguns parvos incompetentes para que se passem para o outro lado da barricada. E passam, apesar de nunca terem provado lentilhas nunca passando do também gaseificante feijão.

 

Formam-se as Comissões de Trabalhadores. Alguns comissários compram óculos de aros intelectuais com lentes sem graduação e pastas de James Bond com que vão às reuniões. Outros, que mal sabem fazer o nome, enquanto esperam que a reunião se inicie, lêem Marx  sem conhecerem as letras todas e, muito menos, sem saberem juntá-las.

O sr. Roy Chrystie, delegado da ICI, como seu bigodinho bem espetado, transplantado da sua própria cabeça, que ficou sem um único pêlo na parte de cima, vem pelos cabelos laterais  que lhe restaram a uma ou duas dessas reuniões, mas desiste logo quando reconhece que nunca saberá dizer ”reivindicações” e que perde toda a atenção sempre que ouve pronunciar tal palavra. W.Spohr apanha com serenidade, pelo menos aparente, as estocadas do dia-a-dia. Tossica, pigarreia, secam-se-lhe as mãos, greta-se-lhe a pele e aparece-lhe caspa, incipiente nos primeiros tempos, como teria diagnosticado Messieur de La Palisse.

 

Aparecem os do costume a tentar sanear toda a gente, pelo menos e inclusive de encarregado para cima. Soprados de cima, chegam a pensar na autogestão. Porque não? se era só uma questão de mudar de  óculos e comprar uma pasta maior? Desistem, todavia, da ideia e foi pena.

 

Mais tarde, os mesmos, recolhem pela fábrica assinaturas para que os americanos acabem com a bomba de neutrões. Hoje, outra vez os mesmos, recolhem esmolas nas igrejas, ajudam à missa e agradecem a Deus pela conversão da Rússia. Mesmo os mais estúpidos, devem ter pensado assim: “Mas quando eu for encarregado, mesmo estando filiado no partido, não serei também saneado pelos que vão querer ocupar o meu novo lugar?” Fica sem efeito. Pra já, queremos dois contos para toda a gente. Deram-se os dois contos a toda a gente. Não me recordo se fui considerado gente nessa altura, mas parece-me que não.

Vitória! Vitória! Vitória! A luta continua! A luta continua! ... ...

 

Vem aí a fascista Festa de Natal.

 

Cabazes iguais pra toda a gente! Nem um pinhão a mais seja para quem for!

A Comissão sobe paternal e patronalmente, ao palco do Crisfal, (o cinema da terra onde, no Inverno, se congelavam os espectadores e no Verão se derretiam os ultracongelados), a chamar os filhos dos camaradas até aí explorados e os dos patrões até aí exploradores, que passariam, daí em diante, a comer no mesmo prato. O pobre Manuel Fino vai pra casa feliz como nunca, com a sua cesta que tem, como as outras, uma fitinha vermelha na asa. Nesse ano ele também vai ter Natal. Todos fomos gente.

 

Por uns momentos, vou deixar outra vez o banho-maria, embora mantenha alguma atenção ao lume.

O pulha mais traidor que nunca fez nada, a não ser o que lhe apeteceu, convém ser citado nestas memórias, e antes que me esqueça, como um exemplo do ciclo fechado da pulhice humana.

 

Vem a revolução, hesita no partido, mas lá adere, sem alarde, ao mais ou menos inócuo centro.

Mantém-se no partido, mas, a jogar em vários tabuleiros, inclina-se para a esquerda e ataca com os pés mal lavados, violentamente, os que lhe tinham dado a mão. Estes, cientes da sua incompetência, como não podem pô-lo na rua,... promovem-no. Inclina-se, agora, todo para a direita.

 

Passa-se para o outro lado. Ataca, com muito maior violência que a anterior, os seus antigos seguidores e companheiros de luta.

Muda de empresa. Perdemos um filho; não digo de quem.

Foi, daqui, logo para o topo de outra empresa, dadas as belas credenciais aqui obtidas. Veio cá pelo menos dois anos a reuniões anuais de gente da sua classe, representando a sua nova casa, sem dizer pêveda a ninguém. Todos os comparsas comiam, bebiam e dormiam à conta. Nesse dia não se podia trabalhar junto à sala de reuniões onde faziam a digestão, entre mais copos que salgadinhos, aos gritos, dando murros na mesa e soltando gargalhadas mefistofélicas.

Não sei se essa figura chegou a cair na sua bebedeira ziguezagueante. Não daria um passo para o pôr de pé e nem sequer para lhe pôr o pé. Só me apetecia cuspir-lhe espessamente, mas isso ia–me enjoar e não é nada bonito.

 

A grande festa da revolução passou. Deus perdoe a quem não a soube entender.

 

Voltemos a onde íamos e como íamos ao nosso repousante banho-maria.

 

Com passos certos se vai crescendo, instalando novas linhas, aumentando as produções.

Antes da temível invasão alemã, instala-se no sector das fibras a primeira extrusora digna de tal nome, uma banca de estiragem também muito capaz e duas novas linhas de polímero. Agora tinha vindo o Doug Skelly, um homem exemplar, já reformado da ICI. Ganha umas lautas coroas, que afrontam de inveja o agente Eigermann, mas, feitas bem as contas, o homem vale bem o dinheiro que lhe pagam. Calmo, ponderado, capaz, cumpridor, metódico, eficiente, educado, leal, com humor, óptimo companheiro, deixou só amigos. (E amigas, isto muito cá para nós).

Tenho enorme prazer de ainda continuar a ser um deles e gostaria de o poder ver mais vezes.

 

Trouxe Skelly consigo um desenhador de projecto, também homem reformado da ICI, um galês, curto como os portugueses, altamente eficiente, apesar de nunca conseguir estar calado. Desenhava como quem fala com a boca cheia, voraz, mas sem sujar a toalha nem deixar cair uma só migalha pró chão. Também outra óptima pessoa; deixou igualmente só amigos, saudades e, também cá muito para nós, amigas. Colin John Pattimore, o "mr" Colin, como lhe chamavam fraternalmente, adorava Licor Beirão e comia batatas fritas, acho que com tudo. Detestava amêijoas e mexilhões, mas adorava arroz doce. Teve a gentileza de nos visitar na fábrica, uns dois anos depois de partir, para ver os amigos e matar saudades, uma palavra que, afinal, tem tradução em inglês.

 

O apoio da ICI era vital para o nosso desenvolvimento tecnológico. Sem ele, a empresa asfixiaria anquilosada, incapaz, com a sua pequena dimensão, de acompanhar os passos largos dos grandes competidores. Éramos pequenos de mais para desenvolver, para inovar, para viver sós. Mesmo que fôssemos capazes, haveria que fazer investigação e aí o investimento é vultuoso e, claramente, não poderia ser rendível para o nosso minúsculo tamanho.

 

E, num aparte sussurrado, sejamos honestos, o nosso país não é científica nem tecnologicamente desenvolvido, por mais nomes que dêem aos ministérios e por mais ministérios que criem. Sem rodeios, a Verdade: somos, perdão, “semos” um país de gente maioritariamente muito atrasada (retirei, patrioticamente, o muitíssimo). Todos os um pouquinho mais esclarecidos, impotentemente, o sabem e adivinham que isto está para durar.

Ainda não se tem aterrado no apeadeiro da Portela, ali no meio do casario, para ver que chegamos a um mundo diferente, muito mais deslocado no tempo do que no espaço.

 

Ao som do fadinho, que começa a ouvir-se ainda com os cintos apertados, o comandante, apesar de cansado de tanto se queixar de ser muito mal pago, anuncia a temperatura no exterior: 23 graus centígrados. Oouuuuh ... ! Exclamam os turistas que vêm lá de cima, da outra Europa, com temperaturas a rondar, por baixo, os zero graus Celsius. E não sei se já repararam que nós, os passageiros portugueses, nos sentimos, por tal dom da natureza que ainda não conseguimos inteiramente destruir, terrivelmente orgulhosos e, por que não dizê-lo, empeneiradamente vaidosos.

Abre-se a porta do avião, diz-se adeus às caras lindas das hospedeiras e entra-se na escada. FIM! 

 

Vem a ventania, a papelada, a poeirada, onde está a minha mala, começa o cheiro horrível a fritos e acabou o encanto. Lá vêm os táxis, as buzinadelas, os manguitos, as covas nas ruas, as ruas nas covas, os autocarros fumarentos, os empurrões, as discussões, os sinais tortos ou ilegíveis, a falta deles, o Estádio do Sporting, o do Benfica, a miséria, as barracas, as bichas (a quem agora chamam pudicamente filas), as carripanas podres, os Mercedes kapados e por kapar, as casas em ruína, as ruínas de casas, os vendilhões, os aceleras, os arrumadores, outra vez o cheiro a fritos, as bichas prós autocarros, as ultrapassagens "ralientas", o gato esborrachado, o cão a oscilar pendularmente em cima da cadela, gargalhadas alarves, um matulão a atirar uma pedra ao cão, o cão a ganir, tudo a rir, o polícia também, mais buzinadelas, gestos obscenos, os túneis navegáveis, o carro estampado, a ambulância quase a estampar-se, o telemóvel sem bateria, os cartazes há anos rotos nas paredes, as paredes esburacadas, os carros nos passeios, as pessoas fora destes, outra vez o cheiro a fritos, os Fiat Uno a fingirem de BMW, estes com uma ou duas almofadas atrás, os jipes com tracção às quatro rodas a brincar aos tanques de guerra, as guerras dos saldos, as tascas, os petiscos, as bisgas pró chão, o polícia a fumar em serviço, a barriga do polícia, a falta de polícia, os polícias que ali não faziam falta, mais um cheiro horrível a fritos, agora o cheiro a sovaco, os carrinhos da feira, a própria feira, o cheiro e o fumo da sardinha assada, o fedor a esgotos, a falta deles, os buracos no passeio, as papeleiras a botar por fora, as mesmas com o fundo aberto ou sem ele, os engarrafamentos, o polícia a apitar, o outro a ameaçar, as cascas de fruta, os pontapés naquelas, que cheiro a esgotos, as montras com os vidros borrados, o garrafão pendurado, o loureiro à porta, o fedor a vinho e a iscas, o bacalhau frito na montra, o feijão ao litro, a vala dos telefones, o buraco pró poste, o poste partido, as sedes degradadas dos partidos, a roupa a secar, os centros comerciais a vender couves, as moscas, as vespas, as persianas partidas, as marquises alumínio panela, o alumínio na água, a falta de água, as retretes imundas, o cheiro a mijo, o poio do cão, o cão vadio, o vadio sem casa, as casas com vadios, a música aos berros, a propaganda política, as ervas daninhas, os grelos, as couves, os putos, as putas, os chulos, os outros, as cestas, o cheiro a sopa de couve e outra vez o raio do pegajoso cheiro a fritos.

 

Infelizmente poucas serão as áreas em que podemos competir e creio, sem pessimismo, se alguma vez no terceiro milénio, mesmo em ritmo muito acelerado, vamos andar no pelotão da frente. Espera-nos o carro-vassoura, vão ver. Habituamo-nos, desde sempre inferiorizados, a ir no pelotão de trás. Pateticamente conformados.

 

Mas nem sempre fomos assim. O que é preciso é recuar uns bons séculos para encontrar o pouco de grande que fizemos.

Dobrámos o Cabo, chegámos à Índia, alcançámos as Américas, mas agora muitos já o ignoram ou têm medo de o dizer em voz alta, para que não nos apelidem de ter sido um bando de piratas. É claro, que também não fomos, como nos venderam na escola, dilatar nem a fé nem o império, essa também não engulo, não achas, ó Luiz Vaz, tu que com tanto engenho e arte nos enalteceste e, por tal, nas lusas terras, tão enxovalhado foste!

 

O outrora capitão de Abril, hoje, creio que coronel de todos os meses do ano, Vasco Lourenço, muito experiente no rebaptismo de pontes, queria dar um nome condigno à nova ponte sobre o Tejo, por isso mesmo: tem vergonha. Vasco da Gama, passados 500 anos!? Por que não Zeca Afonso, sugeriu ele, sem limpar a boca das baboseiras que sempre lhe escorrem pelos cantos da boca? E, sugiro agora eu, com todo o respeito que o Zeca Afonso me merece: por que não Jenita Salomé ou Cândida Branca Flor? Alguém já se imaginou a atravessar a Tonicha dum lado ao outro, sem portagem para lá e apenas com portagem para cá?

 

E que trouxemos nós, olhando os outros que encheram as arcas, pilharam o que puderam e só não levaram as pirâmides por uma questão de peso, trabalheira e falta de sítio prás pôr. O que enche os museus de alguns países? Quem levou pra lá toda aquela tralha?

 

Já realizaram a sensação que deve ter um egípcio a pagar bilhete inteiro no British Museum para ver uma múmia ou o anel dum faraó nascido e criado na sua terra? Ou a puxar pela carteira e arrotar, também sem qualquer desconto, uns francos para ver no Louvre o sarcófago de Ramsés II? Ou a estampar-se no obelisco da Praça da Concórdia, ainda tonto pelo que viu no Louvre, quando ainda meditava como raio é que trouxeram lá da terra aquela merda toda prá’li. E, ainda por cima, ficar sem a carta e ter que pagar os prejuízos no estupor do monumento que se calhar foi roubado a uma antepassada sua, que morava em Alexandria, e que não parava de gritar aos ventos que lhe roubaram dois obeliscos e um sarcófago que tinha no fundo do quintal.

 

 Prossigamos, não vá perdermo-nos.  

A ICI um dia desinteressa-se do poliéster e outro gigante, agora alemão, a Hoechst, AG, toma o seu lugar. Lutas de galos pelas galinhas de ovos de ouro.

Outras terras, outras gentes. Isto agora vai fiar fino, já que os Finos se vão. Do lado português só um dos três irmãos, Manuel, astuto, arguto, e a justificar o nome de família, aquele que sempre viveu mais de perto e intensamente o percurso da empresa, (topas?), ainda restava para passar o testemunho aos novos donos. Os outros dois haviam-se desligado e divergiram por outros caminhos.

 

Restava ainda, mas do lado do ICI, o seu delegado Fritz Koster, holandês de Jacarta, capital da Indonésia, (que raio de coincidência esta!), foi alguém que eu nunca vi com satisfatória nitidez.

Primeiro, porque vinha cá semanalmente só um ou dois dias buscar leite da Serraleite e eu nem sempre o encontrava; segundo, porque andava coberto de nódoas como se andasse com um camuflado vestido; depois, porque o gabinete onde fumava os charutos estava cheio dum fumo tão espesso que me projectava a tossir e a chorar, mal eu abria a porta; e por fim, quando com ele comia, escondia-se atrás dum bife tão ensanguentado e tão alto que não mo deixava ver, nem que eu pedisse para me trazerem uma almofada bem cheia. O Fritz conheço-o pela sua voz gutural, pela falta duma unha e pelo cheiro pestífero a Álvaros puros. Conheço-o também pelos óculos de armação metálica, onde uma haste ainda andará, hoje, presa com um clip. Da sua cara faço uma nebulosa ideia.

 

Muda-se o nome da empresa que passa a ser Hoechst Fibras, S.A. Um novo terrível de dizer, de pronúncia não consensual na própria Alemanha, e de muito mau prenúncio. A telefonista Luísa grita esganiçada, secando o peito e humidificando os corredores, o terrível nome que nunca chegou a pronunciar correctamente. Ela que, como com o Bicho, já tinham passado martírios para que percebessem do lado de lá da linha o Finicisa anterior, um pouco mais assimilável, mas que tiveram de repetir milhentas vezes do lado de cá!

Muda-se o nome ao produto que passa a ser Trevira, um nome conhecido e velho rival do nosso Terylene que, no seu tempo, marcara o rumo. Por pouco, na era de sessenta, a Hoechst AG não tinha aderido, em vez da ICI, aos propósitos iniciais dos três irmãos. Safa!

 

 As pessoas perguntam-se agora sobre o futuro, dia a dia, ano após ano. É o vale tudo, e o que vale de manhã já não vale à tarde. Começa a “reorganização”.

Vai-se ao centro nevrálgico de Mem Martins aprender. Vai-se ver, embasbacado, como ali se trabalha nos mais elevados padrões de eficiência com máquinas alemãs todas compradas em segunda mão, expoentes da mais elevada tecnologia obsoleta. Têm um termómetro, no máximo dois, que indicam: frio/morno/quente/a escaldar. Têm um indicador de nível que diz: vazio/meio cheio/cheio/a botar por fora. E têm dois manómetros que assinalam: a ameaçar chuva/pressão baixa/pressão alta/põe-te a pau.

Fazem lá adubos, medicamentos, fio para as redes de pesca e, nas horas vagas, palmilhas para alpergatas. Também reacondicionam válvulas, ou melhor, torneiras, (que os alemães já não querem porque não vedam e agora, depois de revistas, só deixam passar um niquinho, mas como são prós portugueses estes nem reparam), e recuperam reactores (também reles sucata importada da  Alemanha que os portugueses também não quereriam mas lá têm de comprar (topas?) apesar de furados e se ver o Sol mesmo encoberto através deles). Eu sei lá, meu Deus! Mas os escritórios são vastos e está tudo informatizado.

Os chefes ou são alemães entroncados, para garantir a ordem e a eficiência no campus, ou são franzinos súbditos portugueses que têm a seu lado musculadas e mamudas secretárias alemãs que calçam no mínimo 46, para lhes ter um olho em cima e outro em baixo. Aqui não há misses, mas há sempre na sua guarita elevada, armada até aos dentes, uma Frau, zelosamente, à cuca.

Regressávamos a Portalegre abatidos, envergonhados, de rastos e inferiorizados com tanta grandeza. Chegados a casa, metíamo-nos na cama vestidos e calçados, sem comer, com a cabeça coberta com a almofada, e bem tapados pelo lençol com uma espessa camada de cobertores da serra por cima. Eles lá ficavam cientificamente, agora muito entretidos, a contar anedotas fresquinhas de alentejanos acabados de partir.

 

 Desculpem, mas a seguir, isto vai sair do banho-maria e aquecer só um bocadinho.

 

Cá, os funâmbulos mudam de arame. Os contorcionistas executam novos números, fazendo os mais estranhos exercícios, todos eles inéditos e, até aí, impensáveis no mundo circense. Os braços trocam de omoplata, as pernas fixam-se na cabeça, as mãos saem pelas narinas, da boca saem os pés, destes saem os dedos das mãos e daquelas os dos pés, os olhos reviram-se nas órbitas e espumam saliva enquanto lágrimas rolam pela boca, molhando os pés. No trapézio baloiçam, vigilantes, com um olho lá em cima e outro cá em baixo, os novos senhores. Fazem dieta para manter a forma e, porque o patrão austero não paga almoços, comem uma maçã, um iogurte, bebem água e, dia sim, dia não, ruminam uma sandwich de alface.

 

As tropas de choque comem sapos vivos e é uma festa quando há sapos para engolir. Uns cheiram a suor de campo de concentração sem água corrente e onde se fazem as necessidades em campo aberto, em buracos abertos na terra muito bem alinhados, e a horas certas. Quem cagou, cagou, quem não cagou que cague amanhã, à mesma hora e no mesmo buraco.

Mantém-se vigilantes, de cá para lá, de lá para cá, sobrevoando a rede que os protege e separa dos de pé-descalço. Com um estilete bem afiado, disfarçadamente, alguns procuram cortar as cordas dos trapézios dos que lhes fazem sombra e a quem alguém já retirou a rede. Outros antigos senhores mais assustadiços arranjam-se, vestem o colete e abandonam o barco. Enfiam-se em barcos de recreio de enorme calado. Ficam bem.

 

Outros auscultam os astros, apalpam o terreno e aspiram os ares. Cheira a esturro. Os trapezistas, muito atentos ao que se passa cá em baixo, por vezes chocam entre si. Os mais atrevidos de cá de baixo começam a esfregar as mãos no pó branco e tentam subir para um dos trapézios ainda disponível ou no de alguém que já lá anda. Primeiro um, o mais sôfrego, depois outros. Desajeitados lá se vão equilibrando, roçando, como se distraídos, deliberadamente nos que já lá andavam para que estes os vejam e cheirem o seu odor corporal. Se fosse preciso passariam a comer também o iogurte e a maçã por descascar, depois de bem limpa com as mãos há muito por lavar. O lema agora é: Não se pode andar no trapézio com a barriga cheia, se se quer fazer um bom pé-de-meia.

 

 Eu olhava em pânico para a fisga inferior da porta do meu gabinete e cheirava a medo o ar, com pavor, não fosse alguém ter aberto, por engano ou deliberadamente, uma latinha de Zyklon B, um bem sucedido produto Hoechst, que tão boas provas noutros sítios macabros já deu.

Ninguém, mesmo em suas casas, toma banho de chuveiro, receando que em vez de água saia outra coisa no estado gasoso que os leve directos ao crematório.  

 

Uma empresa brasileira de organização, muito reputada no Mato Mais Que Grosso, a quem o Brasil e certamente Collor de Melo muito devem, é contratada (topas?) para ajudar a reestruturar a agora nossa Hoechst. Havia que começar por qualquer lado; saiu por mero acaso do sorteio a Manutenção, que logo da portaria se via que tinha muita gente a mais. Mas que não se pense que é para pôr quem quer que seja no olho da rua. Credo!

 

Um alemão cruzado, com um nome muito comprido que os tais brasileiros de alterne sempre deturparam e usaram como escudo protector, (topas?), que os contratou e abençoou, bebe maravilhado as suas sábias e convincentes conclusões. Chamavam-lhe eles ”qualquer-coisa, qualquer-coisa, sieben”, o que quer dizer, em tradução livre, ”007 ”.

 

Acompanham-no, concordantes, uns tantos portugas veneradores e muito obrigados, com ventosos e bem ritmados abanares de cabeça, maravilhados e ansiosos por porem a coisa em prática, mal acabem de sair a porta. Eu, acagaçado, dizia “muito bem, muito bem”, como quando era filiado na Legião, ao mesmo tempo que fazia figas, com as mãos muito bem escondidas nos bolsos, não fosse porem-me logo ali na “Strasse”, por justa causa, por obstrução ao novo processo revolucionário em curso (NPREC).

 

Mandaram para cá uns miúdos e miúdas, quando muito com quinze anos, a recibo verde, que se colaram aos encarregados o Bicho, o Narciso, o Serra e o Rita, que não são pedófilos, sem nunca despegarem, e lhes desapertavam, inclusivamente, a braguilha no sossego repousante mas frio do urinóis revestidos a desolador azulejo branco.

Os valores, cuidadosa, fidedigna e metodicamente encontrados pelos miúdos, eram entregues a um especialista na confecção de impressos feitos em computador que ele burilava, burilava, só para jogar com o espaço A6 de que dispunha para encaixar tão vastas teorias, mal traduzidas do inglês americanado, que ele julgava dominar. Trabalhava de porta aberta, para mostrar serviço e escoar o fumo, com uma assistente de borda que lhe chegava papeis e virava as páginas. Ao fim duns meses burilou provisoriamente finalmente um, muito pequenino, depois de ter mandado para o cesto resmas e resmas de folhas de papel em burilação. Para não sujar as mãos nem tapar a vista, a sua polivalente Gerência, que cá aparecia de vez em quando para ver como ia o negócio, teleaponta os convincentes dados e as brilhantes conclusões com um impressionante projector manual de raios “laser” de cor vermelho vivo.

Fazem-se rácios e mais rácios. Inclusive os rácios que os partam.

 

As conclusões brotam em catadupas. As soluções estão à vista. Muda-se de Banco, (topas?) ao entrar, ainda com o pé no ar sobre a soleira da porta. Bendito seja Nosso Senhor e o divino (Banco) Espírito Santo.(continuas a topar?)

 

Muda-se de marca de óleos (topas?) para a marca “Fuchs” dum amigo alemão também cruzado, uma raposa que, umas vezes faz a trasfega duns bidões da marca dum conhecido seu para os seus, que são azul escuro, e outras vezes manda pintar, sem abrir, os do seu fornecedor, do mesmo azul escuro e estampar a sua marca e mais dizeres, se há pressa, tinta e pintor à mão. Ninguém conhece os famosos óleos desta raposa. Nem em Mem Martins, sede do poder e do saber em Portugal que usa, à garrafa,  o conceituadíssimo óleo Fula na sua lubrificação, dele ouviu falar. Não se passa cartão a quem, daqui em diante, o vai utilizar. Consumatum est.

 

Importa-se, via Mem Martins, claro, um programa informático para controlo da manutenção que levará à redução do pessoal, (embora tal, não esteja em causa, como sempre se afirmou), e à drástica diminuição das avarias e consequentes paragens. As avarias passarão a ser incipientes e mortas antes ainda de se fixarem no útero. É a legalização do chamado aborto electromecânico. A toda a hora se aguarda venham a descobrir a pílula anticoncepcional de avaria, (PACA), o que vai acabar com o problema dos objectores de consciência. Esfregam-se vigorosamente as mãos com vontade de as bater, sonoramente e em aclamação, de pé.

 

Com dois reforços em carteira, aliciados também pela carteira, que se lixe o amor à camisola, chamem-lhes parvos, pisga-se o cruzado luso/alemão, com o Banco (o BES, porra!) já no papo, (e com o papo já no Banco), restando-lhe mudar, no sítio para onde vai, de marca de óleos e recorrer aos serviços da famosa empresa de organização para mais uma “força de tarefa” (foi assim que lhes traduziram “task force”). Vejam lá a leiteira que os novos patrões vão ter! Tanta bola de queijo dali vai sair! O tal alemão cruzado leva o piano que trouxera e, na Serra, onde regressa a solidão e a monotonia do chocalhar dos rebanhos, deixa de se ouvir a Sonata para piano Nº 8 em dó menor, opus 13, a conhecida ”Patética” de Ludwig van Beethoven.

 

 Vai-se o doktor Eigermann depois de lamber meticulosamente o invólucro do último iogurte, incluindo a tampa, com duas maçãs starking num bolso, uma banana no outro e dois pacotes de leite magro que lhe sobraram e leva na mão. Deixa, saudoso, ficar o famoso Volvo de matrícula PI-19-14 que lhe foi impingido, o qual teve um comportamento análogo ao da Banca 2 e foi comprado, em segunda mão, como novo, pelo Fuehrer, Herr Kemper, à Embaixada do Daomé, através dum amigo alemão que esteve com ele na segunda guerra mundial e era gaseado da primeira.

Eigermann leva os trastes que mandara vir da terra, sem correr o risco de desafinar o piano porque, avisadamente, piano ele não o trouxe, nem piano sabia tocar.

Já agora digo que, entre todas as peças que por cá aterraram, este Eigermann foi claramente a melhor, em todos os aspectos inclusive nos humanos. Mas nada de misturas! Convidei-o, certo dia para vir comigo, a minha Mulher e o Cameron, um brasileiro da Hoechst Brasil, dar uma espraiadela pelo Portinho da Arrábida e, manhoso, quase a chegar ao sábado que se havia tal combinado, veio dizer que não podia afinal ir por ter muita papelada para levar para casa para aí pôr tudo em dia. Como ele tinha todos os dias laborais apenas interrompidos para comer duas maçãs e um iogurte, eu imagino a montanha de papéis que a toda a hora entravam no seu gabinete para sua avaliação. 

 

Nas reuniões matinais das 10:00, (onde quem chegava mais atrasado metia 100 paus na ranhura dum porco cerâmico), Eigermann, que era uma avarento extremado,  nunca trouxe um lápis que tivesse um comprimento superior a dois centímetros. Admito que, dada a papelada que tinha para despachar, gastava pelo menos um lápis por dia no seu gabinete a dar pareceres e mais pareceres, fazendo contas à moda antiga, trazendo para as reuniões o coto que lhe sobrava do último lápis que tinha usado. Imagino as grosas e grosas de lápis que ele gastava aos fins-de-semana na sua casa na Serra para pôr em dia a papelada que para lá levava.

Outra hipótese que eu ponho, também algo plausível, é que ele, para dar um exemplo de germânica austeridade, levava sempre a mesma ponta do lápis para todas as reuniões a que assistia.

 Nunca mais, aliviado, o convidei para nada, não fosse ele vir com o tal lápis e tomar, em público, importantes notas para a reunião das 10:00 da segunda-feira seguinte. Se lhe acabasse o lápis não vá ele pensar que eu, que ainda fazendo-me mais austero e sovina que ele,  lhe ia emprestar nem por um só segundo a BIC que sempre me acompanha.

Antes de acabar este capítulo, quero, muito baixinho, dizer uma coisa:

tenho cá a impressão que Eigermann levou para a sua Deutschland todas as moedas de 100 paus que o porco nos tinha engolido pela ranhura. Parece que partiu o porco, mas não fez mal, outros porcos mais porcos por cá ficaram. 

 

A seguir vem o "doktor" Theis, (mais um doktor!), de raça mais pura do que Eigermann, sem piano mas com mulher. Vem acabadinho de tosquiar com a máquina zero, adornado para estibordo como o Titanic e a fungar rapé como um inca sem lume. Tudo o que veio, até aqui, é doktor! Traz uma esferográfica de comprimento standard e com ela pôs logo no papel que o tal sistema infalível ia para a gaveta, como fez o outro, na hora do aperto, com o socialismo.

Faz cá dois filhos e dá umas voltas na sua BTT, como se conduzisse um Panzer no Egipto ou uma “side-car” em Dachau. A mulher, que me dizem ser russa, andava por aí encantada a dar nas vistas num jipe Vitara tipo pantera cor-de-rosa toda às florinhas.

O doktor Theis foi-se e passou, se entretanto não foi castrado, a fazer os filhos lá na terra, em vez de cá na Serra.

 

Deixou por cá um novo representante, também importado, ao que me dizem doido muito bem varrido, que trouxe um descomunal bombo de festa, de boa e sadia pele, embora muito coçada pelo uso, que sempre o acompanha neste tipo de tarefas solenes, onde descarrega marcialmente os seus humores e assusta a passarada para a pôr em fuga. Surpreendentemente, este não é doktor e dizem-me que comia bons bifes bem regados e não exagerava na fruta. Mal o vi. Isto é vi-o melhor cá fora, um dia às compras no Modelo, com uma mulher que lhe dava muito por baixo da cintura e que ele encontrou como alternativa à sua deprimente solidão. Nestas doenças não há nada como alternar.

Dizem-me que teve um comportamento muito desportivo subsidiando lautamente em boomerang certeiro um velho clube de futebol da terra que não resistiu a tanta fartura e morreu de indigestão. Indigestão, segundo encontro no seu étimo mais profundo, quer dizer gestão feita por índios. Mas estes eram dum estupor duma raça que não usa uma só pena na cabeça. Aliás, segundo os antropologistas, o seu forte é mesmo depenar os outros, metendo as penas nos bolsos.

 

Eu venho-me embora, sem pena e antes que me depenassem. Na pressa, não trouxe sequer o pífaro que tanta falta me faz cá fora para o peditório que todas as quartas e sábados, dias de mercado em Portalegre, passei a fazer no jardim do Tarro, mesmo em frente ao coreto, que também anda a pedir, no seu caso, que o tratem e acarinhem dele tirando algum partido condigno!

 Graças a umas amizades, saí pela entrada principal no estado sólido e não pela chaminé, no gasoso, como cheguei a recear. Compreendi, mal saí a portaria, o verdadeiro  alcance do que, lá, em Auschwitz, diz naquele arco em ferro forjado que encima o portão principal: “Arbeit macht frei ”.

 

 Acabou a parte que vivi em toda esta longa história, onde ainda há, lá mais para o fim, partes quentes e muito mais gagas que muito me repugna agora contar.

 Deixo aos outros historiadores que por lá ficaram o prazer de acrescentarem outros episódios e novos capítulos com muitas páginas cheias só de coisas boas. 

Embora me fique uma certa curiosidade de conhecer o epílogo, nada mais direi, porque esta história, onde fui um dos figurantes, para mim acabou. 

 

 Passem todos muito bem, sem a minha tão agradável companhia. 

  

Portalegre, em Fevereiro do ano de 1998*

 

 

FIM

 

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