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Ingratidão

 

Comove-me o desinteresse dos que se acotovelam, rasteiram, atropelam e guerreiam para zelarem pelo nosso bem e pelo futuro dos nossos filhos.

 

Sensibiliza-me a coragem com que, entre ímpares e até pares, se batem e trocam mimos para alcançar, manter ou trepar lugares a pensarem em mim e nos outros afónicos como eu.

 

Despedaça-me a energia com que das suas bocas jorram vivas palavras com promessas de irem reabrir gavetas emperradas dos vastos cemitérios onde repousam as cinzas de obras mortas, vezes sem conta pelos outros prometidas. 

 

Aperta-se-me a garganta vê-los, desprezando a úlcera, atrasar o jantar, comendo-o fora de horas e requentado, apontar o dedo firme acusador, para agitar os broncos e tranquilizar os ansiosos, em tempo real e entre o parêntesis do omnipresente futebol das notícias das oito.

 

Emociona-me ver os que lutam sem esmorecer, indignados e compungidos, por aquele passarinho a quem a barragem megalítica vai roubar o ninho, afogar o grilo ou alagar a bonecada feita nos tempos livres pela miudagem do paleolítico. Meu Deus, se as gentes que por lá arrastam a vida já há tanto se habituaram a beber o pó e a sacudir a sede!

 

Arrepia-me e faz-me vertigens ver os que, sorrindo indiferentes a qualquer perigo, deslizam com movimento exponencialmente acelerado sobre finas tábuas de orçamentos elásticos que, à revelia das leis da resistência dos materiais, ultrapassam, sem qualquer fissura, todos os pontos de rotura.

 

Destroça-me ver ignorados os brados indignados dos poetas e de outros cientistas perante o perigo das dioxinas, do efeito de estufa, do orifício (eu não gosto de dizer buraco) do ozono e do urânio empobrecido como se fora povo.

 

Amargura-me pensar nos adeuses apressados na lufa-lufa turbulenta das viagens, (as fantasma não contam), aos areópagos mais longínquos e dispersos, dos que vão erguer, por escassos minutos rigidamente cronometrados, a sua voz, ou selar, com imensuráveis silêncios, as decisões dos poderosos que vão pautando, indiferentes, as nossas vidas periféricas.

 

Arrasa-me … 

 

Mas, mais que tudo, indigna-me a ingratidão dos que fingem ignorar os longos dias de canseiras e as curtas e tão desgastantes noites de insónia passadas por todos esses que se sacrificam, de tudo desprendidos, embora sem largarem os, ainda que algumas vezes quebradiços, galhos da cada vez mais frondosa árvore do poder onde fazem ninho e saltitam alegremente.

 

E esses ingratos são os que, como eu, por estatura, por preguiça ou por inépcia, a eles não conseguem chegar e, por isso, a quem não restam mais que frias réstias de sol! 

 

 

 

*** os nossos incansáveis políticos

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