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Missão

 

Desço de manhã à rua em busca da companhia do meu jornal. Missão de reformado!

 

Desvio-me dos carros que ocupam inteirinhos o meu passeio, enquanto polícias, na outra banda e na sua missão, pedem a algum transgressor os documentos e o triângulo.

 

Fujo à cova que o calceteiro, na sua missão, de vez em quando vem tapar. Nunca ninguém lhe perguntou nem ele se interessou por que é que aquele mesmo buraco estava sempre a ocupar o seu tempo.

 

Atravesso agora o jardim e aqui passo pelos mesmos pacotes de refresco ou leite achocolatado vazios atirados há dias para o relvado, ao lado dos outros de tabaco que sempre lá residem. Aqui, um jardineiro, não sei se distraído, se zangado ou se estou-me-nas-tintas, enquanto contempla a vida, rega os pacotes profusamente com jacto violento como faz às agapantas, aos lírios e aos jacintos que até nem precisavam de água. Mas a sua missão é regar e é só para isso que lhe pagam.

 

Ervas daninhas altas, viçosas e já em flor envergonham as que foram transplantadas, certamente com espírito de missão, vindas do viveiro da Câmara e que pouca flor dão. Este jardineiro não tira ervas ou porque nem sabe o que são ervas ou porque lhe disseram que a sua missão era plantar plantas e nunca ninguém lhe falou em flores. Disseram para pôr lá as plantas e não é a sua missão fazer com que elas dêem flor ou não.

 

Num laguinho lá existente, várias latas de pirolitos vazias e outros flutuadores andam à superfície enquanto os que já se encheram jazem no fundo escuro que raramente a porcaria deixa enxergar. O jardineiro que lava por vezes lá as mãos, abanando a cabeça, queixa-se como eu de que ninguém vem limpar o lago. Mas, o senhor só rega e corta a relva. É essa a sua missão.

 

Outro tem por missão aparar o canteiro, retocar no arbusto a asinha da cesta ou o bico do passarinho. Aquela jovem árvore, que mirra porque faz dois domingos alguém a calcou e ninguém tem por missão mantê-la viva, serve para ele dependurar o casaco que hoje está um dia de morrer.

 

A saca do supermercado, já desbotada e rota, há meses que vive desfraldada no ramo daquela árvore onde, à sua sombra, aquele outro jardineiro vai também, na sua própria missão, juntando as folhas para que outro, na sua própria missão, as venha levar.

 

Aqueles senhores que, como eu, descem a minha rua e têm como missão olhar por estas coisas não terão ninguém que tenha por missão fazê-los cumprir a sua missão?!

 

 

 

*** Em Portalegre, 

    desde a minha casa até ao ridículo Quiosque feito pela CMP, com as cores da cidade, 

    onde compro o meu jornal. Este aborto fica no coração da cidade, junto ao famoso Plátano.

 

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