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Na Idade do Ferro 

 VOLUME II

 

Cá estamos de volta.

 

 

Embora se vivesse em santa ditadura, pus-me humildemente numa bicha (bicha era o termo correctamente usado na época, antes da invasão brasileira) cheia de povo ordeiro ansioso por se despachar.

 

Calhou-me na rifa um corpulento e ameaçador Pitbull puríssimo, não tenho bem a certeza se castrado ou não. Com uma das enormes patorras dianteiras, empurrou-me para o lado e rosnou-me qualquer coisa que não entendi. Com medo, não pedi que repetisse o que havia rosnado, não fosse apanhar uma terrível mordidela, seguida ou acompanhada por uma boa biqueirada.

  

Fiquei, com o ar mais humilde que pude afivelar, ali ao lado à espera de ordens, enquanto ele e os outros iam despachando toda aquela carneirada amorfa, que, pouco depois, apressada, foi desaparecendo enfiando-se nos seus postos de trabalho ou de amena preguiceira. Cada um tinha de lá estar já com o capacete enterrado na cabeça e a chapa cravada no peito ao bater das 08:00, nem mais um segundo. 

Lembrei-me com isto dos tempos em que as horas batiam e era preciso, todos os dias, uma de manhã e outra ao deitar, dar corda aos relógios e acertá-los mais ou menos a olho. Até esse prazer os filhos da mãe, (da mãe?), nos conseguiram roubar! 

 

O Pitbull que me calhou tinha nome, como qualquer cão vulgar, sem raça definida, que tenha um dono amigo dos animais. Todos lhe chamavam “Caldeira”. Desnorteado e com o pavor que me atacava na altura, associei logo caldeira a inferno e cheguei, mais a sério que nunca, a pensar em pisgar-me dali antes que a coisa começasse mesmo a aquecer. Mas, porque de certeza não me iam deixar sair sem previamente terem procedido a um prolongado interrogatório, armado em valente, tive de me aguentar!

 

O “senhor Caldeira” (fiquei muito admirado, porque nunca tinha ouvido um cão, mesmo de raça, ser tratado por senhor) perguntou-me pela Chapa, de dentes à vista numa rosnadela longa de cão preparado a morder logo à primeira. Que Chapa?!

Eu tinha que ter uma Chapa com um número muito bem lá chapado. Só à chapada! pensei eu, cobardemente. Naquele tempo só se podia pensar em silêncio, muito às escondidas e, com duas ou mais voltas, bem fechado por dentro. Deixou-me dar um passo em frente e indicou-me o local onde devia ir buscar a minha.

 

Já não me recordo como cheguei, nem quem me levou, ao chapeador. O que eu sei é que fui chapeado e não vale a pena puxar mais pela cabeça para saber ao certo nem como nem por quem.  

De chapa ao peito, presa por um bebé na camisa, senti-me logo outro. Deram-me depois um capacete onde estava o meu número muito bem escarrapachado. Que orgulho! Estava vento, havia no ar muito pó das obras, e uma série de lágrimas irreprimíveis, correram-me pela cara abaixo nela deixando bem visíveis as marcas do corrimento. 

 

As chapas, naquela altura, equivaliam aos actuais “chips” que permitem, via satélite, saber sempre, exactamente, onde cada um está. 

Como, na época, ainda não havia satélites destinados a estes fins aparentemente pacíficos, eram os informadores, uns mesmo da PIDE, outros meros colaboradores de sopro, que davam a todo o momento as coordenadas de cada um. O 825 está no telhado da Laminagem sem o capacete, o 627 foi à cantina e já lá está há mais de meia hora, o 731 está parado a conversar com o 837 à porta da Aciaria, etc.

Os actuais chips não fariam melhor, muito pelo contrário, pois, além das coordenadas, as chapas e os capacetes permitiam, fornecer informações preciosas, como aquelas que acabei de exemplificar.

 

Já chapeado, fui-me apresentar ao sempre atarefadíssimo Chefe do Estaleiro, o engenheiro Américo Dias Azevedo, um homem que ostentava orgulhosamente a chapa e que gostava imenso de exibir a sua extrema devoção pelo trabalho e a profunda dedicação à empresa. Algumas vezes o ouvi dizer pelos corredores, bem alto, para que se ouvisse em toda a casa, que nem para mijar (sic) tinha tempo.

 

Dias Azevedo, que melhor se devia chamar Azevedo a Dias, muita pena que tivesse aquele grande defeito, que fede a graxa rançosa, que eu podia muito bem aqui deixar passar em claro. Mas não deixo. Não deixo porque não quero ofender os muitos outros que ganham decentemente a sua vida e assim não se comportam.  

Sempre na mesma linha de actuação, Azevedo usava a camisa desapertada até ao terceiro ou quarto botão, não apenas para exibir as suas freimas, mas, talvez mais, para permitir que uma enorme cruz enfiada num cordão, tudo em ouro de lei maciço, que exibia pendurado ao pescoço, balouçasse à sua e á nossa frente, quase a roçar-nos as ventas. 

 

Só mais uma:  

 

Um dia, depois do almoço na Casa da Palmeira, um grupo bastante compacto de comensais regressava em passo lento aos seus postos de trabalho.

Nesse grupo estava de certeza eu, também estava de certeza o Dias Azevedo e, também de certeza, mais uma meia dúzia de não me lembro bem quem. Na passada, alguém do grupo disse em voz bem audível mas sussurrada que vinha aí o nobre Alfredo da Costa  Azevedo, sem dizer nada nem olhar para trás, abandona o grupo inesperadamente e, muito ligeiro, sobe ao cimo dum dos muitos montes de terra por ali estavam espalhados. Lá no topo, a cerca de 4 m de altura, olha interessadíssimo para todos os lados à procura de sei lá eu, nem ele, o quê. Azevedo não queria ver nada, Azevedo queria ser visto a fazer aquela linda figura.      

Se eu, na altura, fosse o futuro Marcelo Rebelo de Sousa, dava-lhe um onze. Sem aquele repelente defeito, dar-lhe-ia um 15 mais.

 

Voltemos atrás.

 

Perante a urgência com que fui chamado, já nem falo na banda do Seixal, era mais que de esperar que alguém, muito ansioso, estivesse à minha espera. Ninguém me aguardava, nem sequer o Presidente da Junta de Freguesia de Paio Pires, que devia ter sido avisado do facto, sabia de nada!  

 

Creio que foi o próprio Dias Azevedo quem decidiu que eu ficasse à guarda do engenheiro Serrão Mendes, um futuro bom amigo que, coitado, também não tinha nada para me dar que fazer. Serrão Mendes havia um dia de ter a seu cargo as Oficinas de Conservação, mas, para já, como ainda não havia oficinas em pé, ele ia fazendo biscates de ocasião próprios da baralhada mais ou menos organizada de uma vasta unidade fabril em fase de construção.

Inventou-se qualquer coisa para fazer que eu andava a fazer qualquer coisa e, pronto, lá ia eu fazendo que fazia, porque não tinha nada que fazer. Complicado, não é? Isso sei-o eu, porque por elas passei. 

 

Mas, vá lá, arranjaram-me um sítio razoável para estar. Eu ficava, a fazer não sei bem o quê, numa antiga saleta da casa com janela para a rua que, para impressionar, deram o nome de Gabinete Técnico, logo à entrada e à esquerda, por baixo do gabinete do Chefe do Estaleiro.   

Estavam nesta saleta três desenhadores: um era o Costa, outro era o Ortiz e um outro o Dário.

Eu ia ficar sentado numa secretária (metálica, descarnada e fria) virado de frente para eles, como se fosse um mestre-escola, e para a parede por trás deles, onde estava pregada uma planta geral do vastíssimo complexo fabril.

Uma tarefa que tínhamos era de ir colorindo o que, dia a dia, se ia avançando na obra. No meio daquela baralhada e dispersão, não era nada fácil ter a escrita em dia. O nobre Alfredo, nem bom-dia, nem boa-tarde, nem sequer hum, raríssimas vezes passava por lá com o Américo Azevedo pela trela, ignorando a minha presença e a dos demais assalariados. Bardamerda!  

 

Por muito tempo me interroguei por que me quiseram meter ali dentro, para mais assim tão à pressa, quando, pelos vistos, não havia pressa nenhuma. Ou havia? Se calhar até havia! 

Pelo que depois me foi dado depois ouvir e apreciar, tenho a certeza que fui admitido por engano. Sim, não estou a gozar, entrei ali por engano! 

Não posso jurar, mas deve ter sido, mais ou menos, como vou já a seguir contar.  

 

Havia perto do Saldanha, desculpem, perto do Marquês, na Rua Braancamp, 7, umas pilhas de fichas de todos os candidatos. Segundo o nível da cunha, na ficha dos candidatos era posta uma letra, A, B, C, etc. e faziam-se pilhas distintas dos A, dos B, dos C, e por aí fora, até ao F.   

 

Aos indivíduos que tivessem uma valente e grandessíssima cunha era posta na sua ficha a letra A. À medida que a valência e a grandeza da cunha iam decrescendo a letra ia alfabeticamente progredindo e, assim, a seguir ao A vinha o B, depois o C, etc., como disse, até ao F.  

Quem tivesse um A entrava logo, logo, logo, sem mais perguntas nem conversas, ainda me levas uma canelada que ficas a ganir. Quem tivesse B podia esperar um niquinho, não te preocupes meu filho, mas tinha que entrar. Os com a letra C já iam aguardar mais um pouco, tanta pressa para quê, mas lá acabavam por ser admitidos. E assim por diante. A partir do F, inclusive, estava tudo F, e não entrava ninguém.  

 

Eu vou dar dois exemplos:

 

1. Suponhamos que a PIDE lá queria meter um bufo. Pediam ao tipo de caca que tinha um caco no olho direito, e cujo nome completo não há meio de me vir à cabeça, e zás: a ficha do bufo apanhava com um A, e o dito bufo entrava logo para o sítio onde era necessário ter alguém para bufar.  

 

2. O filho do jardineiro do Excelentíssimo Senhor Sub-Secretário de Sua Excelência o Excelentíssimo Senhor Ministro das Corporações é legionário, tem uma pequena avença na PIDE que lhe dá 500$00 por mês - (quinhentos paus) - e quer-se casar. Mas o aspirante a noivo, ou já noivo mesmo, é um grandessíssimo vadiola e anda por aí aos paus, embora sempre à escuta, todo o dia a roçar-se por paredes e esquinas.

 

O Excelentíssimo Senhor Sub-Secretário de Sua Excelência o Excelentíssimo Senhor Ministro das Corporações telefona, ou melhor, manda telefonar, dizendo que é da parte do referido Ministério, para um dos muitos vigorosos oficiais na reserva que por toda a parte se pastavam no edifício da Rua Braamcamp, 7 e, mais uma vez, zás, (um zás, agora, menos vigoroso, mas, de qualquer modo, um zás!), e a ficha do vadiola levava com um B. O rapaz podia fazer as suas contas, arranjar casa, comprar o recheio e marcar, à vontade, a data do casamento, porque o tacho estava mais que garantido.  

 

Então, que se deve ter passado comigo? 

 

Exactamente: um gajo qualquer, que era para ter um A na sua ficha, lixou-se temporariamente porque alguém se enganou e pôs o A dele na ficha de outro sacana que estava para ser F e que, por acaso, calhou ser a minha humilde e inocente pessoa. 

 

Perceberam, agora, como é que, sem ler nem escrever e a contar muito mal pelos dedos, eu, por uma simples troca de letras, me livrei de ser F e passei por cima de toda a gente? 

 

Ai que giro! Será que eu passei à frente do sobrinho de uma das empregadas de dentro do Champas ou dum qualquer nojento A que passou a estar F e era um conceituado bufo da PIDE?! 

 

Já quase sei um pouco mais do nome do tipo do monóculo e do pingalim. Veio-me assim tão de repente à cabeça que ainda estou meio zonzo. Deixem-me só recobrar um bocadinho …

… Ribeiro!

 

Já temos António Sebastião Ribeiro e sabemos que o sujeito, além de alentejano, era major. Deve faltar pouco para eu me lembrar do resto. Também já apurei que ele era de Estremoz e de uma freguesia que tem um nome dum Santo muito pouco venerado, de segunda ou terceira categoria, mas com direito a caixa de esmolas privativa.  

 

Entretanto, vou contando algumas cenas soltas, infelizmente sem nenhuma ordem cronológica, nem sequência lógica, porque tal seria impossível tantos anos já foram passados e tão atordoado eu fiquei.

 

Quando falei no Diário de Notícias daquela época, a propósito dos anúncios de emprego em que aquele jornaleco era muito fértil, lembrei-me do Domingos Sequeira (meu ex-assistente de Física Geral, no glorioso ano que passei pela calina Coimbra dos doutores) que, manhã cedo, ainda do lado de lá, o comprava, antes de se meter no barco que o havia de levar a Cacilhas para apanhar uma das camionetas alugadas à Beira-Rio que o havia de levar a Paio Pires.

 

Santo André! Freguesia de Santo André é o nome da freguesia onde o tal tipo nasceu. Custou, desculpem, porra!  

 

Voltando algo atrás, não sei bem ao certo por que é que o Domingos Sequeira o Diário de Notícias, pois acho que ele mal o lia, se é que alguma coisa naquela outra coisa ele se dignava a ler!  

 

O ilustre amarantino Dr. António da Silva Júnior, homem de humor muito oculto e muito observador, cheio de rinite e saudável ronha, afiançava-me que o Sequeira fazia aquela cena pelo imenso prazer que lhe dava ver voarem pela janela da camioneta as folhas rasgadas daquele pasquim que ia lançando ao longo do caminho. Já na Cova da Piedade, duas ou três folhas se tinham marchado e, muito antes do Fogueteiro, nem ponta daquela porcaria lhe restava.

Se a camioneta parasse, estou certo que o Sequeira descia a correr, com aquele seu passo incerto, para ir comprar outro Diário de Notícias, nem que ele fosse dum qualquer dia anterior, para lhe fazer exactamente o mesmo que havia raivosamente feito ao primeiro.  

 

Mal chegava ao Laboratório, que ficava logo à entrada e à direita, bem junto à Portaria, o Sequeira, depois de ter vomitado todo o pequeno-almoço quase nas botas dos guarda-portões, ia logo directo lavar muito bem as mãos, para delas tirar a borrada de tinta deixada pelo tal jornal, e perfumar-se muito bem com “água de Província Ultramarina” para disfarçar o pegajoso cheiro a cavalgadura. “Província Ultramarina” era um eufemismo que foi arranjado para que não fosse pronunciada a excomungada palavra Colónia.   

 

Sequeira era um requentado solteirão, bastante coca-bichinhos e culto, e um requintado ponto em tudo o que fazia. Vejam lá que, apenas para se poder divertir, um dia mudou de casa pelo gozo enorme de ir morar para uma rua que tinha um nome igualzinho ao seu, a Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. A nova casa era pior e mais cara do que até aí vivera, o que permite bem avaliar até onde podia ir a madureza do Sequeira. De facto, o tal Domingos António Sequeira (1768 - 1837) que deu o nome à rua foi mesmo seu antepassado, um mui  ilustre pintor, o que fortemente atenua a sua colorida madureza.   

 

Agora vou contar uma estória de um outro bom ponto chamado Raposeiro, este casado e também inteligente e culto, de olhar baixo muito matreiro. Um bom raposão era ele, diga-se.

Tinha ele finíssimo sentido de humor e estava-se nas tintas para quase tudo o que está convencionado nos melhores livros da arte de bem cavalgar a toda a sela. 

 

Vivia na famosa Costa de Caparica com a Simone, a sua mulher que trabalhava na biblioteca da empresa e vinha para o trabalho com ele no carocha verde. Ele devia pegar, é o pegas, às 08:00 e a Simone entrar às 09:00. (Para quem não sabe, às 08:00, ou antes, pega-se, às 09.00, ou depois, entra-se.)

 

O Raposeiro devia fazer muito por alto a média ponderada das horas do casal e chegava sempre, matematicamente, por volta das 08:30, a passar. Este abuso punha em delírio tremens aquela gente zelosa que o controlava e a quem ele não ligava patavina, isto é, ligar ligava, mas só quando os queria mandar, na sua característica surdina de boca baixa, à merda.  

 

O nome completo do Raposeiro era Carlos Alberto Gaspar Dias Raposeiro.

Aquele Dias metido ali no meio do nome estava-lhe atravessado. Dizia-me ele que, em vez de tal nome, gostava de ser Andrade, Almeida, Aristides, Anacleto, qualquer coisa que começasse por A, para não ter a impronunciável sigla CAGDR, mas sim o popular CAGAR, que era o que ele olimpicamente se estava para tudo.

 

Era, e oxalá que ainda continue a ser, assim, o Carlos Raposeiro que, tenho a certeza, eliminou do nome o Dias para briosamente, quem sabe, passar a ser Almeida, como eu, o que muito me honra.  

 

Continuemos.

 

Na Siderurgia tudo era construído com elevadíssimos coeficientes de segurança (em gíria técnica,  de cagaço), em cimento armadíssimo ou ciclópico sem uma única pedra.

O cimento era uma verdadeira obsessão. Não apenas as sapatas, como é usual em construção civil, tudo era feito usando o cimento, desde as profundezas das fundações até à cúpula dos telhados, fora uns tantos vidros, para permitirem entrar um pouco de luz coada. 

 

Parecerá estranho que se tenha adoptado uma solução destas, pois creio que em todas as siderurgias que há pelo mundo, para pilares e telhados sempre são usadas estruturas em perfis de aço, quase todos de grande bitola, o que permite uma construção muito mais ágil, sem necessidade de cofragens, e a alteração relativamente fácil e muito mais expedita de qualquer estrutura.

 

Bem sei que em Portugal não se faziam, (nem se viriam a fazer), esses perfis de aço chamados pesados, mas também sei que o vergalhão de aço para fazer o betão armado tinha, como teve e há-de continuar a ter, de ser importado.

As estradas e todas as infra-estruturas foram igualmente feitas usando toneladas e toneladas de cimento, o que até me parece bem acertado.  

 

Quem souber que o Champas era também o rei quase absoluto dos cimentos em Portugal topa bem a razão da originalidade da solução que ali foi adoptada. 

 

Lembro a engraçada e arrojada estética do telhado da Laminagem de execução prática algo delicada que levou a que, uns meses antes de eu entrar na empresa, num terrível acidente, perdessem ali a vida mais de vinte operários, fora os que foram acabar de finar-se em outras paragens, mais os que ficaram estropiados para o resto da vida, não sei se mais felizes ou se mais infelizes por terem sobrevivido, pois alguns ficaram amarrados, para sempre, à cama ou à cadeiras de rodas.  

 

É altura de voltarmos um bocadinho atrás no tempo.

 

O primitivo quartel onde os pioneiros se albergavam, alguns deles futuros prisioneiros do campo de concentração de Paio Pires, era no Largo da Biblioteca, em Lisboa. Nessa altura ainda o homem do caco era um bem rasteiro tenente mas já com imponentes e distantes ares de marechal.

 

Nessa fase embrionária ainda se punha a hipótese do referido campo de trabalhos forçados poder vir a ser construído em Alcochete, um local já na altura fadado para que tudo o que fosse do tipo "jamé" ali pudesse vir a ser construído.

  

O até há bem pouco tenente era agora major, uma coisa assim como é um conhecido magarefe, um valentão dos nossos democráticos tempos em que entram futebóis, batatas, sucatas e outras ocultas negociatas. 

 

No fatídico dia em que ocorreu o já referido grave acidente já a Sede da Siderurgia Nacional estava na Rua Braancamp, 7. Não só os familiares como também a gente mais chegada das vítimas inundaram aquela casa com os mais angustiados e dolorosos telefonemas.

As pobres das secretárias, incansáveis e impotentes, afadigaram-se para dar as melhores respostas a toda aquela pobre gente. Gente não apenas pobre porque o era mesmo, mas porque agora,  além de mais pobre, passava a ser também mais infeliz.

O agora major, que até há bem pouco fora um pomposo tenente, continuava com o caco no olho e a não cumprimentar ninguém. A toda aquela  arraia miúda não passava nem o menor nem o mais reles pedacinho de cartão.  

Insurgiu-se de forma violenta, como se estivesse na mais elevada caserna deste mundo, por não ter sido logo informado pessoalmente do brutal acidente  por qualquer uma das sempre ignoradas secretárias que por ali andavam.  Chamou uma inocente que, por acaso, nem a ele directamente reportava, mas a sim ao muito nobre Alfredo que ali perto tinha o seu gabinete.

Tanto espumou, barafustou e  perdigotou que, no seu esbracejar de  audaz cavaleiro, em dada altura, do seu  olho preguiçoso caiu o turvo monóculo que ele, lesto, conseguiu apanhar no ar com uma das mãos, sem ter de calçar a luva nem usar o pingalim. A jovem secretária era a Nélia, que ainda hoje se limpa e desinfecta integralmente sempre que, mesmo muito ao longe, vê alguém a perdigotar uma gotinha que seja.

A Nélia foi por isso por ele "homenageada" com três dias de suspensão, a única mancha na sua longa carreira que ali estava com brilho a começar.

 

Por razões que ignoro, julgo que não ligadas ao tipo de telhado, também ali teve um acidente o meu colega e amigo Figueiredo que trabalhava para o empreiteiro “Silva & Silva”, que por qualquer azar seu, evitável ou não, se estatelou de grande altura no chão para não mais se levantar.  

Outros colegas meus contemporâneos, mas engenheiros civis, ali trabalharam:

o Letras da Luz, como contratado ao serviço da Siderurgia e o Paiva (Paivinha) por conta do empreiteiro “Veiga”. Todos eles, o Figueiredo incluído, terminaram o curso de Engenharia Civil na Universidade do Porto no mesmo ano que eu, muitos anos antes de ser assinado o célebre Tratado de Bolonha.  

 

Foi muito junto àquele aziago telhado, mas já com ele corrigido para não se desmoronar de ponta a ponta como um dominó, que, com tudo quase pronto e já com gente a andar cá por baixo a fazer treinos operacionais, eu próprio apanhei um cagaço dos grandes que me arranhou a frente e coçou as costas, torcendo-me o pé esquerdo cerca de noventa graus no sentido dos ponteiros dos relógios. Não fosse eu, na altura, um nojento pele e osso muito estreitinho de peito e anca, tinha-me também ficado por ali.

 

Como isto se passou comigo, e eu tenho a certezíssima de que aconteceu, vou dar mais alguns detalhes que podem servir de aviso.  

Uma das tarefas que me foi atribuída foi a de tratar da formação do Pessoal médio/superior nos seus aspectos básicos, que era o de saber ensinar e lidar decentemente, entre si e com os seus subordinados. Claro que tudo isto era malhar em ferro frio, pois todos julgavam que eu vinha ensinar o que toda a gente estava farta de saber. E, nisso e noutras coisas, eram quase todos uns lamentáveis ignorantes que, de certeza, me tinham como um intruso de ocasião e um parvo a tempo inteiro.

O único que acreditava muito a sério nisso era o engenheiro Mário Höfle de Araújo Moreira, que comigo passou um mês, em Versalhes, no “Centre d`Études et Organisation” (CEO) a frequentar um curso intensivo sobre métodos de ensinar e saber lidar com as pessoas.

 

Hospedámo-nos em Paris no Hotel Saint-Lazare, na Rue d`Amsterdam, junto à gare com o mesmo nome, a gare de Saint-Lazare, donde partíamos todos os dias úteis de comboio para Versalhes para regressar ao fim da tarde.

Almoçávamos no CEO. Foi um tal fartar de comer endívias e rabanetes muito pequeninos e cilíndricos levemente salteados em manteiga, tudo muito bem empurrado para baixo com água proveniente das encantadoras torneiras de Versalhes.

 

Jogávamos, depois do repasto, com a francesada presente (devíamos, ao todo, ser aí uns dezasseis bicos) a “pétanque”, o que muito ajudava a fazer a “digestão”, e voltávamos os dois pela tardinha para Paris, cada um para seu lado.  

Para mim, foi bastante benéfico este curso tão elementar por aquilo em que me ajudou a saber a lidar e a tratar com as pessoas, bípedes peludos de carne e osso, como eu. E, muito importante, ajudou-me também a saber pensar e a melhor organizar a minha vida.  

 

Araújo Moreira, acabado este curso, veio-se embora para a Rua Braancamp, 7 e eu fui logo dali para a Alemanha do Ruhr, onde, em várias Siderurgias da região, estagiavam engenheiros como o Lemos Pereira (Redução), o Coutinho (Laminagem), o Noronha (Redução), o Botelho Cardoso, que fora chefe do estaleiro, (Laminagem), o Andresen de Abreu (Sinterização), não sei quem mais e os futuros encarregados da fábrica de Paio Pires - Seixal. Todos, ou quase todos estes últimos eram ex-maquinistas navais, mareados de tanto andar de barco, muito saudosos da casa e, cheios de comer tanto peixe, desesperados por meterem o dente em carne vivinha a saltar.

 

Soube-se da minha chegada e os alemães anunciaram que vinha aí um “pedagogo”, o que, ao princípio, a mim próprio assustou e deve ter apavorado todos aqueles meus colegas emigrados que eu nunca tinha visto até aí.  Que raio vem cá fazer este gajo?!  

 

Volto, mais uma vez, um pouco atrás e, antes que me esqueça, vou contar o que me aconteceu debaixo do tal malfadado telhado da Laminagem que, antes, a tanta gente roubou a vida e destroçou os lares.   

 

Eu, na minha missão quase impossível, ia acompanhando os que haviam recebido as simples mas doutas lições que trouxera do CEO.  

Um deles era o Álvaro, um moço muito vivo, que ficou, pelo menos de início, como condutor e instrutor da condução de pontes rolantes.

 

Um certo dia, vi-o lá em cima dentro da cabina duma ponte, a treinar-se, de cá para lá, de lá para cá, e resolvi ir ter com ele, como era minha missão, e fazia parte duma das regras básicas que fui aprender a Versalhes: acompanhar o interessado.  

O Álvaro acenou-me da cabina e eu, por gestos que ele bem entendeu e confirmou, disse-lhe que ia lá acima ter com ele. Andámos, com ele a manobrar, de um lado para o outro a conversar sobre tudo o que dizia respeito ao seu (e meu) trabalho e, também, como mandavam aquelas normas, em coisas da vida corrente, o que é muito esquecido por quase todos: acolhimento e culto das relações humanas.  

 

Imagino que estive, lá em cima, com o Álvaro cerca de trinta minutos, não mais. Quando resolvi sair, disse-lhe que aguardasse o meu sinal para ele poder retomar o seu treino sem me atropelar nem eu malhar lá em baixo. Tudo entendido.  

 

Estava eu já num extremo da ponte-rolante, pronto a descer para a pista onde assentava o carril, quando o Álvaro, para minha enorme surpresa e pavor, começou a mover aquela jigajoga ainda comigo lá em cima.

Vi aproximar-se rapidamente um pilar e não tive mais outra coisa que fazer senão encolher-me e espremer-me todo contra a ponte, sem sequer ter tido tempo para rezar mais que “Ave-Maria cheia de… “.  

Estava, agora, a centímetros do pilar e, provavelmente, a segundos do fim da minha tão promissora vida. Não tinha a certeza se ia poder passar na estreita passagem livre entre a ponte de aço e o pilar de betão. Mais me aterrorizei, quando pensei que, se o pilar tivesse qualquer ferro saliente espetado, por mais curto que fosse, eu ia ser cortado aproximadamente a meio, algures na região da cintura, como é costume ver fazer-se no circo, mas com um muito bem engendrado truque.   

Levei uma boa sova, fiquei algo machucado, mas, muito à rasca, consegui passar. Acabei, ainda lá em cima, de rezar o resto da Ave-Maria que havia encetado mais um Padre-Nosso quase inteirinho, porque ainda hoje não o sei todo de cor, e desci para ir almoçar, sem sequer notar que ia a manquejar e me começavam a doer algumas partes do meu esbelto e tão querido corpinho.

O Álvaro, também espantado, disse-me depois que viu um tipo parecido comigo, (nunca me tinha passado pela cabeça que pudesse haver tipos parecidos comigo!) que ele ia jurar ser eu mesmo, e continuou tranquilo no seu trabalho, a treinar-se sem freimas dum lado para o outro.

 

Qualquer coisa falhou! O Álvaro, antes de pôr a ponte rolante em movimento, devia ter esperado que eu lhe desse um sinal inequívoco que ele devia confirmar também muito claramente.  

Ele e especialmente eu fomos os grandes culpados. 

 

Vou contar um pormenor que muito me aborrece e envergonha:

 

um dos capítulos importantes  do curso de formação do CEO era dedicado a ensinar como se deve dar correctamente uma ordem, para evitar perdas de tempo, erros de execução, falhas de interpretação, estando o factor segurança acima de tudo, em primeiríssimo lugar.  

Deu resultado, não deu? Merda para o pedagogo! 

 

Houve gente incrédula, bem conhecedora do local, que, depois, foi lá acima com uma fita métrica medir o espaço por onde consegui passar: 20 cm!

Se fosses mais gordo estavas lixado, pá, diziam-me alguns amigos, (estou a ouvir o Paivinha), que, de longe, eram muito mais amigos da onça do que meus.

Alguém me deve ter ido levar à casa de saúde da Cova da Piedade e com uma entorse, sem nada partido, vá lá, levaram-me dali para os meus aposentos em Almada. Devem ter-me ajudado a deitar na cama e rápidas melhoras, muito obrigado, não há-de ser nada.

Dois ou três dias depôs deste acidente, muito gentis foram, telefonam-me da Siderurgia - Paio Pires.  Era o Reis Pereira, nessa altura a trabalhar na Segurança. Não queriam saber se eu estava melhor ou pior, o gajo que se vá lixar. O tal da costa, que era nobre e também Alfredo como se fosse um pobre, queria saber por vias travessas o que é que eu andava a fazer num sítio daqueles. Disse ele ao Reis Pereira que informasse o tão curioso interessado que eu, aquele humilde servo, andava lá em cima aos pardais.

Não sei o que Reis Pereira pôs no relatório, mas às tantas, pôs aquilo que eu lhe disse, como era seu dever. Estou-me nas tintas!  

Mais tarde o Joaquim Vieira da Silva, o engenheiro civil que, feito topógrafo, definiu as coordenadas do futuro e único Alto-forno de Portugal, havia de vir a ser o Chefe do Serviço de Segurança. O Joaquim, que tinha naquele seu feito geodésico muito orgulho, é ainda hoje, espero que por alguns anos mais, um dos meus melhores amigos.  

 

A Siderurgia era banhada pelas águas já quase mortas da ampla bacia do Tejo. Os terrenos que ocupava devem ter pertencido a vários donos que tinham por ali as suas casas e terras. A Casa da Palmeira era uma delas e a casa onde eu, o Eng. Cupertino, o Agente-Técnico Reis Pereira, o Eng. Serrão Mendes, o Chefe do Estaleiro e outros, era outra. Ali, numa ala contígua trabalhavam vários topógrafos, como o Senhor Umbelino, o Gutierres (atenção, com i a seguir ao t), mais uns quatro ou cinco bicos.   

 

Havia algumas casas mais, com, por exemplo, uma muito pequerrucha que servia para laboratório de ensaios de materiais e outros fins análogos, onde imperava o Agente-Técnico Sousa Marques.

Um certo dia, veio alguém da Sede, Rua Braancamp, 7, que por ali passou, abriu a porta do casinhoto, meteu parte da cabeça lá dentro e viu, com um só olho e sem qualquer caco, que ali havia gente a mais. Eram, ao todo cinco ou seis gatos pardos. Quando o novo edifício do Laboratório estivesse pronto, esse número havia de subir aí para os cinquenta, quantos ao certo, não sei. Só me recordo que foram muitos e que nem todos eram pardos. Já naquele tempo …    

 

Na Casa da Palmeira estava um alemão, Herr Eisenmann (seria Eichmann? Que horror, Eichmann, acho que não!) que ali representava o Consórcio DEMAG a quem foi adjudicada a obra e levou a massa.

 

O da “Solução Final”, (Endelösung), era outro e chamava-se Eichmann, Adolf, como também se chamava o tristemente famoso Hitler. 

 

A elite almoçava ali nos baixos, (os alemães, não, porque deviam comer, não sei onde nem quando, maçãs com a casca por lavar), no período da montagem, pois ainda tinha de ser construída a projectada Cantina, que havia de ser dirigida a contracto a prazo pelo senhor Fernandes, casado com a Dona Maria.

 

Nesta tal Cantina, um pouco mais tarde, começou a poder comer democraticamente toda a gente, embora houvesse uma marcada segregação de lugares e mesas. Havia muitos (qual veladamente, qual carapuça?) que disputavam partilhar a mesa, tu cá, tu lá, vai mais uma batata e um bocadinho de esparregado, com Fulano ou Sicrano.  

Comia-se barato e razoavelmente, mas, como sempre e em toda a parte, havia quem protestasse por ali não servirem como no Tavares Rico ao preço do tasco reles do Beco dos Caloteiros, sito no rés-do-chão da prédio quase a cair no bairro onde morava. 

 

Prometi a mim mesmo falar dum inesquecível empregado de mesa da Cantina a quem chamávamos Professor, (julgo que foi o Marques da Costa, engenheiro,  que assim o baptizou). Era de baixa estatura, mais magro do que gordo, simpático, velocíssimo, um grande equilibrista de pratos, copos e travessas e, “last but not least”, um bem-humorado e respeitador moço.

Devido à enorme potência que desenvolvia a elevadas rotações, o suor ácido   escorria-lhe em catadupas pela cara abaixo, muito dele penetrando nas travessas e pratos o que tornava os molhos algo aguados, não sei se mais ou menos saborosos, mas muito mais fáceis de digerir.

Por causa daquela maldita alcunha, perdi-lhe o verdadeiro nome que eu tanto gostaria figurasse nesta história como homenagem às suas qualidades de gente.  

 

Todos os empregados de mesa andavam de camisa branca, laço preto e calças e sapatos também pretos com solas de borracha. Se não era assim, tenham paciência, mas é assim que hoje os estou a ver vestidos e calçados.  

 

Voltemos um pouco atrás, à Casa da Palmeira e ao Eisenmann (nome muito apropriado ao local, Homem de Ferro). 

 

Este Eisenmann que eu conheci era ajudante de campo e tinha a sua guarita no primeiro andar da Casa da Palmeira.

Dava-se muito bem comigo e eu várias vezes passava por lá onde palrávamos, em mau inglês, muito pior que o das docas londrinas, mas sem palavrões pelo meio.

O chefe dele também era alemão, mas trabalhava em Lisboa, na Sede, Rua Braancamp, 7. Às vezes, sempre de surpresa, descia ao pantanal e vinha, discretamente, Achtung"! , embora de gravata mas à paisana, fazer uma ronda.  

 

Os alemães que para cá vieram trabalhar eram quase todos uns grandes porcos. Não sei se os que por lá ficaram também eram, mas estes … 

 

Estávamos em 1959, apenas catorze anos depois de ter acabado a 2ª guerra mundial, e quase todos eles tinham idade de a ter vivido. Eram, na sua maioria, inglórios nazis de primeira geração à mistura com alguns de segunda. 

 

Findo o trabalho, iam arranjar-se nos balneários e dar uma penteadela deixando uma pequena repa caída sobre o lado esquerdo da testa.

Os lavatórios não chegavam para todos, vindos em grande avalancha, e quem não conseguia apanhar um livre, vi eu com estes meus olhos, curvava-se e lavava a cara num bidé.  

Os bidés somados aos lavatórios existentes chegavam e sobravam para todos eles. Imagine-se o que se passaria se tal não acontecesse, com tantas sanitas vagas com água corrente ali mesmo à mão de semear.  

 

E já agora ouçam mais esta.

 

Estava eu um dia a palrar com o Eisenmann, que, para se dar ares de pessoa livre, tinha o enorme prazer de andar com o seu chapéu de aba larga pousado na cabeça dentro do seu “gabinete”, quando ouvimos chegar suavemente um carro, um Mercedes preto e dos grandes. Eisenmann, ligeiramente curvado, espreita de longe pelos vidros muito empoados da janela e logo atira pela aba, num movimento rápido e instintivo, o chapéu para longe. No Mercedes acabava de chegar, em passo leve e sem prévio anúncio, o seu “Führer”.

Eu, para não ser apanhado, fugi não sei por onde, deixando Eisenmann no seu posto, só, branco como a cal, todo a chocalhar por dentro de pavor.  

Não sei se foi ilusão minha, mas, naquela altura, pareceu-me vê-lo todo sujo de lama, com a farda rota, a máscara de gás enfiada na cara, o capacete de aço agarrado à cabeça e uma metralhadora aperrada nas mãos, prontinha a matraquear, desvairadamente, sem olhar a quem, em todas as direcções e até à última bala.  

Aquele ambiente de quartel em que se vivia tinha os seus reflexos e proporcionava-se a coisas umas engraçadas, outras desgraçadas outras assim assim.  

As pessoas, por mais amigas que parecessem, comunicavam entre si de pé atrás, sempre à defesa e muito na retranca. Olá …!

Ainda que tivessem os gabinetes porta com porta, correspondiam-se mais por escrito do que por palavras que o vento podia levar.   

Se fosse coisa de pouca ou nenhuma monta, trocavam entre si Notas Internas, um bilhetinho em formato A5 escrito à mão de que ficava uma cópia de segurança passada a papel químico.

As Notas Internas faziam parte dum caderninho, com o original, com linhas, destacável pelo picotado e a cópia, sem linhas, fixa na lombada. Estes livrinhos eram por cada um guardados por muito tempo, tal como hoje se guarda durante cinco anos toda a papelada do IRS.   

Depois de passada a Nota Interna, cada um lavava muito bem as suas mãos, isso agora é contigo, arranja-te como puderes que eu, se for preciso, tenho aqui uma cópia para te chapar com ela bem no meio das ventas.  

As Notas Internas trocavam-se horizontalmente entre sargentos.

As Ordens de Serviço eram escritas em papel A4 à máquina pelas secretárias dos capitães a quem chamavam Chefes de Serviço. As Ordens de Serviço atiravam-se verticalmente, de cima para baixo, sem direito a retorno. 

Houvesse uma dúvida, como atrás disse, saía a ameaça da cópia da Nota Interna, para fazer de prova e lixar o outro, ou citava-se a Ordem de Serviço, igualmente para lixar o mesmo outro.   

 

Passada a fase de estaleiro, no topo da pirâmide fabril passou a estar o Eng. Fernando Alves da Silva, que vivia nos escritórios centrais, junto à portaria.

Alves da Silva era uma pessoa distante e muito sisuda que todos diziam, com certa razão, ter cara de pau.

Quando o pude conhecer melhor, verifiquei que quem vê caras não vê o material de que elas são feitas. Ria-se com prazer, tinha um bom sentido de humor e era uma pessoa normal. Normal, não. Bastante acima do normal, é que ele, na verdade, era.  

Alves da Silva pegava às 08:00 da manhã e vinha normalmente na camioneta como o outro gado bravio. A sua secretária, a Nélia, aquele a quem o tipo do caco suspendeu por três dias, entrava às 09:00, uma hora depois, de acordo com o seu contracto de trabalho. Impagável!

Alves da Silva, como eu e a outra maralha não escriturária, trabalhávamos 47 horas e meia por semana. Faltava só meia horinha para toda essa macacada trabalhar as 48 horas da praxe. Houve alguém de fino pensar que se lembrou disso e ainda houve uns ameaços que acabaram por o dissuadir. Só digo que, neste caso, parece não ter sido o tipo do caco permanente e do pingalim ocasional quem teve tal brilhante ideia.   

Ah, é verdade, já me esquecia de dizer o resto do nome daquele sujeito!  

Íamos nós em António Sebastião Ribeiro. Lembrei-me agora que a seguir ao Ribeiro vinha "de".

Vamos, dizia eu, em António Sebastião Ribeiro de …

Como o resto é um muito arrevesado, qualquer coisa como senhor Pina, esperem só um bocadinho, enquanto eu vou lá dentro ver como é que se escreve ao certo e volto já, tá bem? 

 

FIM da macacada

 

Março de 2008, quarenta e muitos anos depois.

 (com posteriores adendas e correcções)

 

 

 

 

 

 

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