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Não batam no vidro

 

Como andar de barco não me costuma enjoar, pelo menos com a costa bem à vista, em águas calmas e muito pouco profundas, e porque ando mais que enjoado de andar em terra, resolvi este ano meter-me onze (por extenso, onze), dias e tal num navio grandote quanto baste, com muitas atracções à minha disposição e promissoras paragens de encanto espalhadas por aqui e ali.

 

Ver de perto os fiordes da Noruega e, já agora, ir lá acima ao Cabo Norte, heroicamente, como quem chega ao cume do Everest, pareceu-me o mais adequado itinerário para realizar esta minha estreia verdadeiramente náutica.

 

Já tinha ido pelo Douro acima, já tinha viajado de cacilheiro, já tinha pedalado uma gaivota num lago de jardim, já tinha andado num barco a remos sem nunca remar, mas num barco assim tão grande nem sequer pensado tinha um dia vir a meter-me.

 

O ponto de partida e chegada era Amesterdão, o que me permitia revisitar, quer à ida, quer no regresso, essa tão linda terra cheia de água, barcos, bicicletas, luzes (incluindo as vermelhas), gentes de todas as raças e feitios, homens e mulheres comuns, homens e mulheres fora do comum (mas cada vez mais comuns), belas casas e sítios que ninguém ainda conseguiu abastardar, como conseguiu quem projectou os edifícios do Casino, da Ópera e mais umas tantas chalaças arquitectónicas que acabam quase por passar despercebidas, tão esmagadas elas são pela abundante beleza acumulada e conservada ao longo de séculos.

 

O navio zarpava num Sábado às cinco da tarde do porto de Amesterdão e os passageiros tinham três horas, da uma às quatro, para nele se encafuarem e acomodarem. Entrei, mais ou menos a meio tempo, para dar ares que não tinha pressa nenhuma e que estava mais que habituado a estas e outras andanças.  

 

Os passageiros foram afectuosamente recebidos a bordo, com sorrisos abertos de dimensões muito bem estudadas que seduziam logo qualquer um, mesmo os que sabem, mais ou menos, como estas coisas são ensaiadas e preparadas nos bastidores.

 

Não nos esperava, como vaidosamente cheguei a esperar, o comandante do navio, muito bem fardado, debruado e crivado de medalhas, mas sim um casal (um rapaz e uma moça) de jovens vestidos à maruja que seguravam uma bóia de salvação muito branca, com fitinhas azuis, a dizer “Benvenutti”, e nos fazia travar o passo para que os ávidos fotógrafos da casa nos tirassem, sem ficar muito tremida, a primeira das milhentas fotos a que todos, daí em diante, havíamos de, dentro e fora do navio, (nas incursões por terra), implacavelmente vir a ser sujeitos.

 

O comandante apareceu ao segundo dia para se apresentar e dizer umas curtas palavras de acolhimento a todos, num auditório onde, no corredor largo à entrada, esperou por cada par, ou ímpar, amparando as costas dos navegantes, para ficar, sempre com o mesmo bem chapado sorriso, em todas, muito mais de quinhentas, fotografias ali disparadas.

 

Veio a rigor, tal como eu o esperara ver no primeiro dia à entrada do navio: casaco de trespasse num tom creme muito suave, um galãozinho em cada ombro, uma ancorazinha dourada em cada lado da gola, seis botões à vista em chapa dourada e um escondido debaixo de uma das abas, camisa imaculadamente alva com colarinho de bicos arrebitados e muito bem engomados, onde se abraçava um distinto laço preto de asas bem abertas, muito bem centrado.

Numa plaquinha rectangular muito discreta, pregada na sua lapela esquerda, estavam o seu nome e o posto. Não vinha carregado de medalhas como eu tinha previsto, tal como aparecem em qualquer cerimónia paroquial todos os nossos bombeiros, os nossos oficiais no activo e até os na reserva.  

 

Com tudo impecável e profissionalmente bem organizado, as malas que deixámos lá fora, no grande hall de entrada, antes de subirmos para o barco, como quem descalça os sapatos em casa onde manda a mulher, ou na mesquita onde manda Alah, lá estavam, muito bem etiquetadas e alinhadinhas, de pé, como se não fosse nada com elas, à porta da nossa cabina.

 

Ali dentro, através dos seus dois olhos muito bem abertos para estibordo, pude muito tempo estar tranquilo, longe de tantas actividades postas à minha disposição e admirar, sempre com a máquina fotográfica espoletada, e pronta a disparar, a tão justamente gabada paisagem que se ia desenrolando, sempre encantadora e surpreendente, mesmo quando repetidamente só se via água e mais água, longe da terra firme que havia de nos aparecer, esporadicamente, dominando, imponente e sobranceira, a grandeza do mar que navegávamos.

Em frente a essas duas vigias havia uma larga consola onde, de pé, me apoiava, tendo à minha frente, nela suportada, mapas e toda a papelada relacionada com a viagem e dos locais por onde íamos passar ou já havíamos passado.

 

Outras vezes, deitado no meu berço, a ler ou a fazer sudokus de dificuldade média, deixava-me, sem qualquer resistência, embalar suavemente, enquanto que, com o canto dum olho muito mortiço, ia olhando a rota GPS exibida no ecrã da televisão, até me deixar vencer pela soneira quase permanente que me começou a atacar desde que entrei naquele suave e terno colo quase maternal.

 

Arrumadas um tanto à pressa as malas, uma meia hora antes da partida, subimos lá a cima às duas últimas pontes, a oito e a nove, esta chamada Sun e a outra apelidada de Sports, onde se podia girar livremente e ver, naquela amenidade duma tarde de Agosto lá muito a norte, tudo o que se ia passando à nossa volta.

 

Mal ali cheguei, não pude, logo à primeira, acreditar no que estava a ver. Mas era verdade; tão verdade como eu estar ali embarcado!

 

Na ponte 7, designada por Laguna, na zona onde o ar é livre e livre se pode mover, estão uma pequena piscina e dois Jacuzzi. Uau!

 

Dentro de um destes já estava, sei lá desde quando, sentado e mergulhado até à terceira cervical a contar de cima, um maduro, bem nutrido sem ser anafado, aí na perigosa zona dos seus cinquenta e poucos, de cabeça quase firme e olhar extremamente pacífico. Ali passou todo o tempo de arranque para a longa viagem que estava a iniciar-se naquele momento, como haveria de passar muitos tempos que se haviam de seguir, sem nunca ter a menor curiosidade de saber porque vinha tanta gente lá a cima perturbar o seu sossego de batráquio muito bem tratado.   

 

Jurei de imediato que só podia ser um português e quase podia afirmar que era um alentejano lá de baixo, e ainda mais precisamente, da vasta e árida zona de Beja e da Amareleja.

 

O sujeito, de facto, não usava boné como os alentejanos e, afinal, era italiano, como depois, muito aliviado, pude verificar. O homem passava ali uma grande parte da sua lauta vida a bordo, e ia acompanhado da mulher, uma senhora jeitosa, sempre de grandes óculos escuros, toda muito bem vestida de preto, certamente para disfarçar ainda mais as banhas já muito comprimidas.

Vi-a, pelo menos duas vezes, ir ajudá-lo a sair da tina dos seus prazeres oníricos, logo o ajudando a enfiar cuidadosamente um roupão branco fornecido pela casa, quando devia achar que já era tempo mais que suficiente para o marido estar de molho. Este podia, com a sua imprudência e a mania dos exageros, começar a encolher, ou ficar-se mesmo por ali, com ela feita uma cobiçada viúva, sem terem acabado juntos, como no altar foi jurado, e depois tantas vezes prometido, o sempre adiado e tão sonhado cruzeiro. Eu julgo que a grande decisão foi finalmente tomada pelo marido, quando leu no prospecto da viagem que o barco tinha Jacuzzi.

 

Demorou mais de duas horas a percorrer, em marcha muito lenta, diga-se, a vasta zona portuária de Amesterdão, surpreendentemente linda, apesar da muita indústria, muita dela de aparência pesada, por ali disseminada sem o menor sinal de poluição selvagem à vista.

 

Muita daquela gente invasora, que ávida irrompera pelo espaço “jacuzziano”, sempre a correr de um lado para o outro à procura dos melhores ângulos e dos mais apetecíveis temas, acabou naturalmente por se cansar de tirar fotografias quando lhes pareceu não haver muito mais coisas diferentes para ver e apreciar. A curiosidade foi-se diluindo e, com algum sol ainda tépido acima do horizonte, um ventinho algo fresco começou a enxotar toda aquela populaça para outras paragens mais protegidas, tanto mais que ainda não houvera tempo para terem sido exploradas.

 

Fez-me pena deixar aquele sujeito ainda metido no Jacuzzi e, antes de me retirar, sem que ele visse nem suspeitasse, não resisti a meter discretamente uma das mãos no outro Jacuzzi que estava totalmente livre, para apreciar a temperatura da água e sentir o seu atraente borbulhar.  

O grande estupor, esperto e sorna como um alentejano da mais pura raça, tinha razão! A água estava tão bem temperada e acariciante que, de facto era muito mais recomendável, comprar em outro qualquer sítio, nem que fosse nas Ilhas Maurícias ou na Patagónia, e mesmo numa outra altura qualquer, uma dúzia de bons postais alusivos àquela paisagem, do que perder aquela regalia incluída no preço, com direito a roupão, toalha e tudo.

 

Veio o primeiro jantar.

 

Tínhamos escolhido o segundo turno, mesmo sabendo do sério risco de irmos apanhar com chusmas de espanhóis barulhentos que estão acostumados a comer muitíssimo mais tarde e ir para a cama muito bem empanturrados. com toda a digestão por fazer, e melhor bebidos, para ainda mais a atrasar.

 

Uma mesa redonda posta para oito esperava-nos.

 

Quando lá chegámos, eu e a minha mulher, uns escassos três minutos depois da hora marcada, ou seja, às vinte e uma horas e tinta e três minutos, já lá estavam sentados cinco outros promitentes convivas:

um casal de madeirenses profundos, com a sua filha entremeada, sempre muda e muito enfiada nos seus inocentes quinze anos, e duas senhoras, a quem não se deve perguntar a idade porque não interessa, nem é bonito e basta fazer uma pequena ideia, que completavam o grupo, e acabaram por ser umas excelentes e muito agradáveis companheiras de viagem.

 

Todos eles eram professores; o casal madeirense, ainda robusto e fresco, está no activo. As duas senhoras, felizmente para elas, estão já no passivo e em excelente forma, apesar de virem munidas dos seus remédios de rotina, próprios da sua ignorada idade, mais os outros para todo o tipo de enxaquecas imagináveis, desde a Aspirina até ao penso rápido.

 

Apesar das circunstâncias, nunca ali se falou de ensino, nem sequer foram sussurrados os nomes Maria, nem Lurdes, nem Rodrigues e, a não ser numa ou outra anedota mais picante, pouco se pronunciaram as palavras José, muito menos Sócrates e, nem ao de leve, se tocou na palavra engenheiro.

 

Falou-se, de facto, muito em Magalhães, não o que deu a primeira volta ao mundo num barco à vela e se chamava Fernão, mas do outro que inventou o famoso computador português que, para glória nossa, se está a espalhar por todo o globo muito mais depressa que a Sida, embora, por tal ser impossível, bastante menos que a corrupção.

 

Faltava vir um conviva. Dizia-se, com justificada preocupação, que também era português. Eu não sei bem porquê, sempre admiti que o faltoso devia ser um macho.

O suposto macho não apareceu nesse primeiro jantar e como, passado outro, insistiu em não aparecer, foi-lhe dada baixa e a cadeira que a ele estava destinada foi retirada. Assim todos pudemos alargar um pouco mais os braços, desdobrar melhor os guardanapos e apanhar, muito mais rapidamente e com menor esforço, os talheres e nacos de tudo o que ia caindo permanentemente na fofa alcatifa que cobria o chão.   

 

Houve a compreensível preocupação dos gestores do cruzeiro em encher as mesas com gente da mesma nacionalidade e fala, o que umas vezes pode ser bom, mas outras pode ser um desastre. Imaginemos só que me calhava …

 

Os outros cinco comensais que nos aguardavam já sabiam que havia um total de treze portugueses a bordo, um conhecido número com muito má fama. Para além dessa característica que tal número tem, todos sabem que para cima de doze portugueses juntos já começa a ser gente a mais e começa mesmo a tornar-se muito arriscada a situação quando se passa a barreira crítica dos treze, onde tudo de mau pode vir a acontecer.

 

Antes de chegarmos, (eu e a minha mulher), à sala de jantar, o Restaurante Cristal, naquele nadinha de tempo de atraso, deviam os presentes estar a julgar que éramos três, dado o número de cadeiras livres. Imagino a muita curiosidade e mesmo ansiedade com que aguardaram aqueles três longos minutos para verem como eram as nossas lindas caras e, especialmente, a cor e o tipo da nossa de pinta.

 

Há sempre um risco terrível nestas coisas dos lugares fixos, pois nunca se sabe quem nos pode vir a calhar ao lado. Imaginemos só que me calhava …

 

Ao fim de pouco tempo embarcado, acabei por topar, (os portugueses topam-se), os outros seis compatriotas a bordo e, dado que sete mais seis, (sem recorrer à máquina de calcular) é igual a treze, fiquei aliviado porque, com as minhas obcecantes e perniciosas manias, aquela sinistra cadeira vazia deixou de me apavorar. A paz de espírito, que eu tanto procuro alcançar, não foi, assim, nem por isto, nem por muito tempo, perturbada.

 

Ao jantar comíamos, como disse, sempre os mesmos nos mesmos lugares naquela ampla mesa redonda, tal com aconteceu naquele jantar algo agitado em que faltou muita gente mais débil, por se ter enrolado um tubo de borracha com mais de cem metros de comprimento num dos estabilizadores do navio. Todos andámos tontos e aos bordos, com se tivéssemos apanhado uma razoável piela, numa grande orgia de grupo que deixou alguns em jejum a regurgitar nas suas cabinas, amaldiçoando baixinho a ideia que tiveram de se meterem a passear num barco, muitos deles sem saberem nadar nem boiar, ao menos de costas.  

 

Eu não fui ver o tão badalado tubo, porque, em princípio, acredito em tudo o que me dizem e detesto profundamente também tudo o que me cheire a desestabilizadores.

Os mais curiosos, que não queriam perder pitada de nada, foram logo lá para cima apreciar aquela longa tripa que serpenteava na esteira do navio como uma cobra de água presa pela cabeça, toda desesperada e deveras  assanhada.

 

Pelos altifalantes, o comandante Madalloni veio, com voz serena e pausada, acalmar ânimos e regularizar digestões, dizendo o que se passava, que não havia qualquer perigo e que, na próxima escala, já na manhã seguinte, o mal seria remediado e feita, para total descanso, uma rigorosa inspecção ao navio que ia meter mergulhadores e tudo.

 

Faço ideia dos que se acagaçaram e arrependeram de se verem envolvidos naquelas agitadas andanças; eu bem te dizia que era melhor irmos estes dias todos para o sítio do costume, como fazíamos todos os anos, menos naquele em que fomos para Punta Cana e nos desfizemos a rir (com os “caguefes” e todos borrados para baixo da cintura) com tanta ventania, sem sabermos sequer o nome do furacão que na altura estava por ali a passar, valha-nos Deus, olha do que nós nos safámos!

 

Mas também faço ideia dos que se excitaram com a futura gabarolice titânica, (“titânica” vem de Titanic), de irem poder contar, altamente ampliada e floreada, mais aos amigos do peito do que aos inimigos de morte, a terrível façanha de que foram protagonistas passivos, sempre com todas as orquestras a tocar como se não fosse nada com elas, os cançonetistas a berrar como se fosse alguma coisa com eles, mas todos eles impávidos a continuarem muito desafinados, era o que faltava virem para aqui convencidos que íamos chamar o James Last e o Pavarotti; mesmo que eles estivessem mortos, roucos ou paralíticos ia custar uma fortuna, e este tipo de gente não liga a ponta dum chavelho a isto, e o que quer é barulho.  

 

Os jantares tinham uma extensa ementa com inúmeras opções de pratos com nomes muito longos e intrigantes, todavia muito babosos e bem sonantes; vinham escritos em várias línguas: o italiano, o espanhol, o inglês e o alemão.

 

Nos dias de gala, os menus vinham impressos numa espécie de papiro muito bem enrolado, atado com uma fitinha preta muito distinta. Nos dias normais, a que eu chamava, e sempre hei-de chamar, de galo, vinha num livrinho todo bonito, como o dos restaurantes que há em terra que nos levam couro e cabelo e, muitas das vezes, nos servem demasiado mal.

 

Na fase da escolha, havia longos períodos de reflexão e discussão para vermos, comparando todas as línguas postas ao nosso dispor, o que era aquilo assim tão esquisito que tinham para nos servir. Safámo-nos com os conhecimentos que todos tínhamos do mandarim que é uma língua à base de figurinhas que qualquer criança sadia e minimamente escolarizada sabe bem interpretar.

 

O nosso ”camarero”, um homem muito seco de carnes, chamava-se Kuni Sekara e era uma verdadeira simpatia originária do Sri Lanka, com bastante sentido de humor. Punha-me muitas vezes a ementa em alemão, Abendessen, e comigo alemão aufarrrrrranhava para me acompanhar e colaborar naquela gozação pegada.

Kuni desenhava muito bem e, numa noite de gala, esboçou nas costas da ementa de papiro, rapidamente e em muito poucos traços certeiros, a conhecida figura anafada de um buda sentado no chão de pernas abertas e com os joelhos à altura da sua adiposa barriga.  

Em cingalês, o seu idioma, escreveu com letra muito bonita e certinha o seu nome e mais umas tantas palavras correntes, que traduziu, primorosamente desenhadas.

 

Em frente a mim, numa mesa ao fundo, também ela redonda, aí a uns cinco metros de mim, comia uma numerosa trupe que falava espanhol e bebia ao jantar sempre uma garrafa de vinho, fatalmente italiano. Viviam, segundo vim a saber, em Cáceres, Espanha, não muito longe de Portalegre, Portugal, onde eu vivo aos soluços e sobrevivo muito descansadamente.

 

Nós, os portugueses, bebíamos água engarrafada para não parecer muito mal, não fossem pensar que éramos uma camada de tesos forretas que nem água engarrafada podia beber. A água, também por fatalidade, era italiana e engarrafada na fonte. Pelo preço da água avalio, se calhar por defeito, o preço do vinho!

Para que não pensem coisas de mim, juro que não bebo vinho e acompanho as refeições com um pequeno copo de cerveja Super Bock preta do tipo “stout”.

 

Imperava, (imperar é o verbo que melhor se adapta), nessa tal mesa um indivíduo achocolatado a que eu, para facilitar as comunicações internas, comecei a designar, por Nino Vieira.

Nino devia ser casado em não sei quantas núpcias com aquela jovem senhora muito branca, elegante e magra, que comia quase a seu lado, tendo a separá-la do marido o filhito também achocolatado, mas com muito mais baixo teor de cacau do que o pai, já a puxar para o tom Barack Obama, muito na moda uns dois meses depois desta pacífica aventura na conquista do Árctico.  

A mãe de Omar, também era mãe de duas miúdas crescidotas, muito parecidas com ela e cujo pai não era de certeza Nino, mas outro, ou outros  peles brancas quaisquer.

 

O miudinho era fortalhaço e muito giro e chamava-se Omar. Julgo que assim se chamava por não ser tão escuro como o pai e alguém ter dito, quando o viu pela primeira vez, que ele não era nem tanto ó mar, como o pai, nem tanto á terra, como a mãe. Tocava muito bem bateria, batendo, normalmente e persistentemente, com a colher, no prato de boa porcelana que punham à sua frente.

 

Omar um dia, ali mesmo dentro do navio, fez um ano de idade. Houve festa semi-rígida, felizmente com uma só vela para soprar, mas infelizmente acompanhada com aquelas cantorias batidas que há muito me chateiam em português, quanto mais cantadas na algaraviada de línguas dos comensais ali presentes.

 

Claro que veio logo uma chusma de fotógrafos da casa que, na presença de um lauto negócio, começou a disparar a torto e direito "flashes" incomodativos que me encandeavam, e fizeram um longo vídeo que há-de ficar na história de um homem, quem sabe se muito célebre, chamado Omar. 

 

Vieram, como era de esperar, pomposas garrafas dum qualquer espumante rasca italiano, de certeza muito caro ali, mas baratíssimo noutro sítio, logo que longe do navio e da rica Noruega onde tudo, incluindo a gasolina que,  apesar de jorrar abundantemente na sua rendilhada costa, custa os olhos da cara.

 

Houve uma noite da gala.

 

As senhoras exaltadas exultaram, e eu não exultei, mas condescendi em meter-me dentro de um casaco que levei e nunca na vida tinha conseguido apertar, e pus ao pescoço uma gravata do Ermenegildo Zegna que, num dia de loucura total, comprei em Londres, no Harrods que pertence ao Al Fayed, pai do outro Al Fayed que se estampou no Túnel da Alma, em Paris, enquanto fazia espessa marmelada cheia de açúcar mascavado com a Princesa Diana que punha os cornos ao Príncipe Carlos que andava metido com a Camila que punha os chifres ao Parker que não era a sua caneta, mas o seu interposto cornudo marido que, para equilibrar, nem um único par de cornos soube pôr a outro potencial cornudo do seu calibre.  

 

 Como sempre me acontece, e não apenas quando como a balouçar-me dentro de um barco, a gravata cedo apanhou com uns bons pingos de um molho qualquer muito colorido e aromático que não devia conter azeite (italiano), e que, felizmente, fosse qual fosse a sua composição, o que continha era facilmente solúvel em água da torneira. Assim consegui salvar quase por inteiro um dos olhos da cara que a Ermenegilda me tinha custado uns meses atrás na loja do tal Al Fayed.

 

Uma outra noite veio, também classificada de gala, chamada a Noite da Itália, o que me fez usar uma outra gravata virgem, também algo carota, que levei de reserva. Cautamente, eu tinha levado três e das boas.

 

Voltaram a excitar-se todas as senhoras embarcadas, bem como alguns homens de várias idades, muitos deles intensamente infantilizados, como eu um dia hei-de certamente vir a ficar se continuar a meter-me em cruzeiros, nem que seja pelo Douro acima até Gondomar, ou, quando muito, até à barragem de Crestuma/Lever, ou Lever/Crestuma, já não me lembro, nem me quero lembrar.     

 

Desta vez, os empregados de mesa traziam um lindo avental preto com o mapa da Itália e ilhas adjacentes nele estampado. A Sicília dava-lhes, mais milímetro menos milímetro, pelos tomates, (pomodori, em italiano), o que me fez alertá-los para o perigo que corriam se aparecesse por ali um mafioso vingativo dos que não gostam da gente reles que ousa brincar tão ostensivamente com a sua amada terra com um povo trabalhador excepcionalmente honesto, onde se vive, e muitas vezes se morre sem  saber bem como, nem porquê, que se lixe, nem vem para o caso.

 

Em dada altura, (céus!), muitos e muitas se levantaram para dar vivas à Itália e, atrelando-se pelas ancas uns aos outros, correram ondulantes em bicha entre mesas e cadeiras pela sala fora, como se estivessem num daqueles bailes de sociedade recreativa muito foleira, nos meados do século mais que passado e requentado, a dançar, do modo mais que desconchavado, a indecorosa conga que há tanto tempo já lá vai.

 

Assim, como quem não quer a coisa, (eu, de facto, não queria nada aquela coisa), resolvi ir lá a baixo buscar não sei o quê e desapareci dali para ir espreitar pelas vigias do camarote a espuma criada pelo navio em marcha, a lua reflectida na água e, raramente, uma ou outra luz distante a tremular lá longe, umas vezes em terra firme, outras numa outra embarcação que se passeava ou laborava também por ali.

 

Houve, para meu grande galo, ainda uma terceira noite de engravatar e lá fui eu assistir a mais umas chachadas que me punham completamente virado do avesso, com as vísceras todas de fora e com a língua e os olhos metidos muito bem para dentro.

 

Levei nesse dia uma outra gravata de seda puríssima que comprei em saldo na loja do barco por tuta e meia e agora faz um figurão em qualquer parte onde eu chego com ela enrolada ao pescoço.

 

Como eu continuava a não querer a coisa, voltei lá a baixo à minha ponte, que era a quatro e se chamava Aurora, como uma criada de servir que a minha tia Lucinda, em tempos que já lá vão, tinha tido em sua casa.

 

Fui, como anteriormente, buscar outra qualquer coisa, ninguém e muito menos eu sabe bem o quê, e assim desapareci, educadamente como é meu timbre, sem dizer água vai aos presentes, sem rogar alto um só palavrão e sem, tão-pouco, mostrar um só esgar de afogado recente, já com a barriga muito dilatada e a começar a libertar um cheiro pestilento.

 

Ao almoço, para me livrar de ter de decifrar ementas e comer bem e descansado, dispensava as cerimónias protocolares, como o bom e grande guardanapo de algodão com algum poliéster incorporado, e ia ao Buffet Yacht Club, ali na Ponte 7, mesmo ao nível da piscina e dos famigerados Jacuzzi, onde, se não estava a comer nem a dormir, lá devia estar o outro sob a vigilância, pelo menos com um olho em cima, da garbosa mulher que nunca o largava.    

 

Aqui, no Yacht Club, comia-se de tudo e à bruta, e havia mesmo quem sofresse visivelmente por não conseguir, sozinho, enfardar aquilo tudo que estava por ali exposto, apesar do longo tempo que tinha para o poder fazer.

 

Cada bico podia encher as vezes que queria o seu prato; podia, apenas por decência, mudar de bombordo para estibordo, ou da popa para a proa, e recomeçar o enfardanço desde o início numa outra mesa qualquer; podia sair e voltar a entrar para encher o prato no meio de digestões contínuas, como se nada se tivesse passado. De papo bem cheio e com a cabeça apoiada nas mãos em concha, também podia, e até devia, pensar seriamente nos que por esse mundo fora, aos milhares, morrem de fome em cada segundo que, muito ligeiro, passa a cantar. 

 

Segundo a segundo, sempre a pensar em mim, bem nutrido e muito sonolento, ia para a cabina, onde lia um bocadinho de nada, via no GPS onde ia o navio, e não tardava a começar a abençoada sesta minha de cada dia nos dai hoje.

 

Havia no barco muito a fazer lá fora cá dentro, mas a mim nada daquilo me apetecia fazer. Não me apetecia, pronto!

 

Jogging, nem vê-lo; piscina, Deus ma livre; jogos de cartas não me falem; deitado algures no solário, de cabeça tapada e com uma manta por cima, estão doidos; jogar no caça-nicas, não sou parvo; fazer ginástica rítmica, opto pala barriga; aeróbica, idem; jogar na roleta, mete-me medo; ir ao teatro, já chega; jogar o bingo, que horror; meter-me na capela, está fechada e não sei rezar; pensar no jantar, ainda é muito cedo e, primeiro, ainda há-de vir o chá.

Ouvir um pouco de música coada e tranquila, olhar o mar e beber o “cocktail” do dia, com aquele guarda-chuvinha muito parolo espetado numa cereja?

Vá que não vá, e ia, depois de fechar o guarda-chuva e o pousar na mesa.

 

Fui algumas vezes ao auditório chamado Teatro Tropicana.

 

Uma vez, era uma menina esbelta de ar muito meigo a fazer figurinhas com bolinhas de sabão, também elas lindas e meigas a pairarem no ar, e a encostarem-se, e a aderirem umas às outras, como se fossem lésbicas inteiramente assumidas com toda a vergonha perdida.

 

Outra vez, era um casal de artistas a dançar furiosamente o tango, como se fosse um duo de ordinários de chulice recíproca, conforme o negócio se inclinasse para um ou para o outro lado.

 

Uma outra, era um espécie de energúmeno furioso a dar chicotadas violentas e muito certeiras no chão e noutras coisas que andavam pelo ar, como se fosse um guarda de Auschwitz a malhar num judeu muito bem vestido, com o seu fato às riscas largas e verticais a taparem-lhe os ossos. 

 

Ainda outra vez, era um bailarino de flamenco, certamente um italiano gingão, muito assanhado e furioso, a tentar desesperadamente, não sei bem o que lhe deu, furar o soalho com os aguçados e duros tacões dos seus sapatos pretos.

 

O primeiro dia de viagem foi de navegação, isto é, estivemos umas larguíssimas horas em prisão preventiva, fechados no barco sem ver terra, entretidos em qualquer sítio e com qualquer coisa, incluindo comer e voltar a comer até vir, tão tarde, o jantar, com o martírio de ler a ementa em todas as línguas postas à nossa disposição.

 

Um amigo meu que trabalha numa companhia concorrente, a Crystal Cruises, diz-me que há nos cruzeiros gente que nunca sai do barco e prefere ir a todas, naquela vida social intensa de parque senilo-infantil, sem tirarem um bocadinho que seja, par pôr os pés nas terras que estão no programa e por onde se vai parando. Cada um …

 

Fora dos dias de navegação, em que o navio acostava e ficava por ali umas horas, saíamos para fazer, de autocarro ou noutro barco pequeno, qualquer uma das várias incursões em terra, não incluídas no pacote, e postas à nossa escolha, extra-programa. E assim, vi um pouco de Bergen, não muito de Geiranger, um bom bocadinho de Trondheim, o suficiente de Honningsvag (já perto do Cabo Norte), também o que chegasse de Hammerfest, algo de Tromsö, o mais que suficiente de Gravdal, de Molde muito pouco, e não muito de Andalnes (com uma bolinha em cima do A inicial, para este se pronunciar O).

 

Nalgumas visitas guiadas, perdeu-se demasiado tempo com folclores de pacote, e a oportunidade um tanto rara de apreciar um pouco mais da vida e dos costumes daquela gente local foi-se.

 

Antes de me meter em museus que nos mostram, em geral, o passado, tantas vezes distorcido e romanceado, prefiro de longe ver a vida real de hoje, o bulício do dia a dia, os rostos das gentes e, se possível, um nadinha que seja dos seus hábitos e costumes.

Por isso, gostei imenso de Bergen (e da sua lindíssima zona portuária, chamada Bryggen), e de Trondheim (com a sua bela catedral de Nidaros). Aqui, em Trondheim, pude, em total liberdade, almoçar à minha custa, como qualquer norueguês que veio nesse dia à cidade, comprar um lindo quadro a uma pintora de rua e até assistir ao vivo a um muito curioso casamento na Ilenkirke (Igreja de Ilen).

 

Os fiordes são inenarráveis e não ouso sobre eles falar, porque não sou poeta nem tenho o menor talento para os poder descrever com a minha prosa para deles poder dar uma pálida ideia. Ficaram-me na mente e nas incontáveis fotos que disparei a torto e a direito, que algumas vezes revejo, sempre com redobrado prazer.

 

Fazia-me imenso dó ver tanta gente, embarcada como eu, estendida nas camas ou sentadas nas cadeiras de exterior, de olhos e mentes fechadas, a palrar banalidades, sem olharem um só momento para as indescritíveis paisagens que iam passando mesmo a nosso lado, quase permitindo tocar-lhes se esticássemos um pouco os braços. 

 

Muito dó, mas muito mais espanto, me provocava também ver aqueles outros “intelectuais”, deitados ou sentados, a lerem indiferentes os grossos livros que trouxeram, quase sem desviarem os olhos para admirar, uns segundos que fossem, os portentosos cenários que se apresentavam e renovavam por todos os lados.

 

Muitos, os mais pacóvios, limitaram-se a apanhar sol, apenas sol, como se tivessem vindo para um cruzeiro à volta dum planeta distante cujo próprio sol raramente o iluminasse.

 

O Cabo Norte, o ponto mais extremo onde chegámos, é um sítio agreste que deve ser muito bonito quando não faz frio, não sopra o vento, não paira o nevoeiro e se podem tirar fotografias não tão beras como aquelas que pude tirar.

Todos tiravam imensas fotos daquela beleza quase oculta, certamente para depois as mandarem encaixilhar para serem penduradas na sua sala de troféus.

 

Para chegarmos lá acima, tomámos um autocarro desde Honningsvag, onde o Marina ficou pacientemente acostado à nossa espera.

 

Passámos por muitas renas tranquilas a raparem muito rente aquele solo esverdeado quase pelado, e parámos junto a uma tenda de um lapão (sami), que está, vestido a rigor, à porta da sua toca a apanhar coroas aos “lorpões” como eu, que querem ficar na foto a seu lado e da rena de lindos cornos que ele adoptou quando ela ainda não os tinha e que, indiferente e tudo e a todos, comia sem parar na manjedoura posta á sua disposição, como se estivesse no self-service de um navio com o nosso, cheio de renas tipo homem, como muitos que foram no nosso passeio, embora sem cornos tão espampanantes nem tão provocadores.

 

Quase no topo, já muito perto do Cabo, apareceu-nos um lago suavemente integrado nas abas dos montes que o cercam, numa troca de galhardetes que ainda mais fazem realçar a beleza daquele cenário surpreendente de que ambos são os grandes protagonistas.

 

Há no Cabo Norte um pavilhão com um museu, uma capela, um restaurante, uma cafetaria, “souvenirs”, e há … uma sala de cinema onde se pode, e principalmente deve, ir ver um filme extraordinário, com elevadíssima qualidade técnica de imagem, som e conteúdo.

Quase todo ele é filmado a partir de uma câmara instalada dentro de um ousado avião, e mostra-nos, num vasto ecrã de cinco planos, os maravilhosos tesouros que a Natureza, umas vezes sozinha e outras muito bem acompanhada, por ali semeou. Uma meia hora inesquecível que nos provoca arrepios e sensações até aí nunca experimentadas.

 

Só isto justificaria termos ido tão longe ver dançar a conga e assistir a tanta coisa muito mais patética do que pateta, até alcançarmos o topo do continente europeu.

 

No regresso, já a descer, a última paragem foi em Molde, uma linda cidade muito abrigada dos ventos onde proliferam por toda a parte as rosas que muito pouco cheirámos e cujas ruas não tivemos tempo de calcorrear.

O coração da cidade fica mesmo junto ao porto e, se fosse hoje, não iria ver coisas de pouco interesse, como a sua catedral moderníssima, para assim poder caminhar-me pelas ruas e ver a linda praça onde está a Estátua da Menina das Rosas e a do saxofonista, junto ao mercado, muito perto da tal menina.

(Em Molde realizam-se célebres festivais mundiais de jazz).

 

E foi ali, em Molde, que reembarcámos pela última vez no Costa Marina.

 

Para fechar, um longo dia de navegação e de serena contemplação vinha aí.

 

Começam - Olá! - a ver-se de perto plataformas de petróleo espalhadas, por toda a parte, não muito longe da costa.

Não se sente o cheiro, mas adivinha-se no ar que ali bem perto jorra algo que perturba mentes e fomenta ódios e querelas insanáveis, para o bem efémero de uns poucos e a miséria permanente de muitos.

 

Fizemos as malas de véspera e deixámo-las muito bem etiquetadas à porta da cabina. Manhã cedo já lá não estavam.

 

Com muita da gente da tripulação que nos acompanhou e nos tratou sempre de modo exemplar, toda ela em fila para se despedir de nós, lá estavam também as malas á nossa espera, para continuarem connosco até ao fim da viagem.

 

Voltámos a Amesterdão e aí ficámos mais dois dias, antes de regressarmos finalmente a casa, não sem que eu me tenha ido despedir dum gatarrão, meu velho amigo, que passa a vida a dormir todo regalado na montra de um “antiquário” muito desleixado que colou no vidro um papel, muito mais manhoso que qualquer outro gato das minhas relações, onde se pode ler num inglês perfeito, mas muito mal escrito à mão:

 

“Por favor, não batam no vidro. Deixem o gato em PAZ."

 

 

 

 

** O navio "Costa Marina"

  • desloca 25 600 toneladas

  • tem de comprimento 174 m

  • de largura 26 m

  • velocidade máxima 31 nós (nó=milha marítima), cerca de 39 km / h.

  • capacidade para 1000 passageiros

  • tripulação  393 pessoas

 

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