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Não se pode ser bom

 

 

Havia outrora uns senhores muito bons que não queriam nada para si e só pensavam no bem dos outros, a quem carinhosamente chamavam Povo.

 

O Povo vivia muito muito contente e julgava que não lhe faltava nada. Quem não estivesse contente não era Povo e, por isso, dizia-se, sem cometer algum erro de cálculo, que cem por cento do Povo gosava da maior abundância e felicidade.

 

Os que não eram Povo, apesar de serem a maioria esmagadora, como mais tarde até os mais ceguinhos acabaram por ver, eram considerados inimigos do Povo trabalhador e, como tal, afastados, desprezados, psiquiatricamente tratados, enjaulados e, finalmente, despachados.

 

Os Senhores bons viviam assim felizes, de consciências limpas, embora com as botas muito sujas.

 

O  Povo, muito unidinho, dava, com a sua felicidade exuberante, garantias de grande estabilidade e, sempre que alguns daqueles Senhores muito bons lhes falava, batia com eles palmas muito certinhas e bem compassadas. Tão certinhas, tão certinhas eram elas que nem as pombinhas brancas que estavam pousadas nos inofensíveis e não mais que decorativos mísseis transcontinentais, fugiam do seu pacífico poiso, arrulhando orgulhosas por se verem rodeadas de gente tão boa que lutava encarnecidamente pela Paz, de que elas são o símbolo mais universal, mesmo que se esqueçam de pôr um raminho de oliveira no bico.

 

Mas a Morte, com a sua foice e a ajuda do martelo, foi levando dessas terras de trabalho os homens bons que se consideravam imortais, onde o alcance da fartura e do bem-estar eram planeados e rigorosamente cumpridos nos prazos quinquenais  previamente estabelecidos.  

 

Outros homens vieram e começaram a ver que os que eram Povo eram de cada vez mais menos e os que o não eram, eram de cada vez mais mais.

 

O dilema de ser ou na ser Povo agravou-se tanto que muitos dos que o eram começaram timidamente a querer não ser, e alguns dos que não eram a querer avidamente ser, o que criou um caos mental delirante, absolutamente indescritível.   

 

As gentes exploradas dos outros países, onde só os maus mandavam e os estúpidos obedeciam, espantaram-se quando souberam o que o que ia por lá, pois nunca sonharam que fosse tão longe o sacrifício dessa gente boa e sã que nada queria para si e tudo fazia em prol da sua comunidade.  

 

Não só se espantaram como lhes custou a entender que os resultados de tantos esforços humanitários tivessem sido tão mal entendidos.  

 

Uma vez mais, foi um punhado de bons portugueses desinteressados, fumadores inveterados do genuíno tabaco cubano, que explicou ao mundo que a coisa não resultou porque os sacrifícios foram levados longe de mais, e que toda a bondade tem limites que não permitem que se possa ser bom para toda a gente.

 

Esse punhado de gente sacrificada não perdeu a sua fé e continua, alheia de tudo, a lutar, com todas as suas forças, para recomeçar a longa experiência piloto que foi prematuramente interrompida antes de serem alcançados os resultados prometidos para um dia nunca anunciado.

 

O Não-Povo português, a que Camões chamou nobre, apesar da sua tão característica estupidez, não é totalmente parvo e opôs-se a que, em Portugal, nação valente, fosse implantado esse sistema científico que levaria à destruição do odioso capitalismo.

 

Ninguém o consegue convencer que possa valer mais a pena viver em miséria numa sociedade sem classes, do que viver numa sociedade livre em que cada um pode lutar para, por mérito próprio, subir à classe a que se julga ter o direito de pertencer.

 

 

 

*** O desmembrar da União Soviética e a fidelidade dos seus seguidores portugueses.

 

 

Outubro de 1991

 

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