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O Alfaiate

 

O alfaiate quase desapareceu. Vieram os costureiros, que são alfaiates com outro nome, e veio o pronto-a-vestir, que são alfaiates sem nome. O alfaiate, o da fita métrica pendurada ao pescoço, o que tirava as medidas, o que as assentava num livrinho de capa dura e marcava a primeira prova para daí a quinze dias, sempre jurados mas nunca cumpridos, acabou.

 

A coisa arrastava-se, provas sobre provas, com centenas de alfinetes, montes de chumaços, traços e "destraços" certeiros e velozes feitos com uma barrinha aguçada de fino giz. Conversava-se durante as longas provas, os temas afloravam conforme o tipo de cliente, de hoje a oito dias, sem falta, à mesma hora. E, assim, sempre com falta, após um número infindo de provas, até à final, já a chegar o domingo de Páscoa ou o dia do casamento.

 

Uma mocinha da costura vinha entregar a casa a obra num tabuleiro, no sábado, ao fim da tarde, na véspera do acontecimento. Lá vinha sempre, mas sempre, um ou outro arreliador defeito, uma ruga nas espáduas, que nunca viria a desaparecer, uma perna mais curta, um braço mais comprido.

 

A estreia do fatinho, tirados os alinhavos (ficavam sempre alguns), com pancadas violentas nas costas dadas pelos amigos para assentar as costuras, lá se fazia, bem ou mal, no dia aprazado. Em tentativas posteriores, agravava-se ou, quando muito, atenuava-se a ruga e enxertavam-se com relativo sucesso, sem anestesia e quase sem dor, os braços e as pernas.

 

Hoje, os alfaiates da política fazem as leis, seguindo basicamente os velhos métodos dos seus ancestrais homólogos da fazenda: por medida, com muita conversa pelo meio, com atrasos, com defeitos e entrega na véspera, por mão própria, cheias de alinhavos e marcas frescas de giz.

 

Alguns legislados e todos os legisladores assentam-se mutuamente costuras, com fortes abraços e pancadinhas nas costas, até que novos alfaiates, daí a uns poucos anos e se tiverem coragem, venham virar o fato, usando nova (nunca a mesma) fazenda, outros moldes, outro corte e, também, muito convincente conversa.

 

O democrático pronto-a-vestir legal, S, M, L, XL e XXL, não vai tão cedo vestir todos os portugueses. Alguns, do tipo "La loi c'est moi", porque lhes apetece e não porque neles não se encaixem aqueles tamanhos, vão sempre querer fatos por medida, como sempre tiveram os seus embigodados antepassados, que, de chapéu e laço pretos, em pé, de perna levemente cruzada com o biqueira do sapato envernizado assente no chão, e colete com a corrente de ouro do relógio (também de ouro) a ver-se, ficaram naquela amarelecida fotografia, que desde sempre está pendurada na sala de visitas que raramente se abre e onde, semanalmente, apenas se limpa o pó.

 

 

 

 

***

      Acho que alfaiates  destes é coisa que nunca  há-de vir a acabar.

 

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