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O calhau

Na minha terra existe uma enorme calhau, enterrado sabe-se lá até que profundezas, que nunca ninguém conseguiu mover. O eruptivo fenómeno resolveu plantar-se sobre a linha limite que separa duas freguesias inconciliáveis, tão rivais tão rivais, que os fregueses sempre discutem ferozmente qual delas possui a parte maior daquele majestoso empecilho de que todos eles tanto se orgulham.

 

E, assim, nunca nada se fez para que por ali se abrisse um curto caminho que uniria com meia dúzia de passos as duas freguesias, havendo que, para passar duma para a outra, continuar a dar uma enorme volta por vielas tortuosas e mal-amanhadas que todos, mesmo os burros menos dignos desse nome, têm medo de percorrer.

 

Em cada freguesia, de cada lado do monstro, há bancos onde dizem que brota dinheiro a rodos, uma farmácia onde há de tudo e muitos clientes onde pouco dinheiro há, uma escolinha com mais computadores Magalhães que alunos, uma igreja que se enche aos Domingos e dias santos, e muitas outras coisas mais a que não podia faltar, em corpo inteiro, uma rechonchuda e luzidia Junta de Freguesia.

 

Um dia, Lisboa, como diria um nosso inefável soberano insular, decidiu que passasse por ali mais uma auto-estrada e, céus, às tantas, lá ia o nosso tão amado calhau abaixo!

 

Mas não. Fez-se a grandiosa obra e, de capacete branco e colete amarelo, vieram ministros muito entendidos e estendidos em tudo. Como no antigamente, houve inflamados e mui aplaudidos discursos e o calhau, indiferente, lá continuou intacto com a tal auto-estrada cheia de pistas e mais pistas a passar-lhe toda inteireinha por cima, apoiada num pomposo viaduto, a que ninguém, dali, consegue trepar!

 

O que interessa é que, haja o que houver, tudo acabou bem:

o calhau ficou, a estrada passou e ninguém ficou nem há-de ficar a saber ao certo o tamanho do buraco que aloja o abençoado calhau que a tal Lisboa continental se há-de ver mais que grega para conseguir quem lhe empreste dinheiro para pagar os juros de tão mirabolantes orgias financeiras.   

 

 

 

 

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Em Portugal, era então primeiro-ministro o inesquecível e mais que "independente"  Eng. José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.

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