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O Fontanário

 

Existe um fontanário na minha terra onde ainda hoje muita gente se vai abastecer; muitos porque ainda não têm água em casa, outros porque acham que aquela é mais gostosa que a dos canos, outros porque ela faz bem aos rins e ainda outros porque não há nada melhor para a bexiga.

Aqui há uns dias, quando chegaram, as mulheres, a pé, para encher as bilhas de barro e os homens, de carro, para encher os garrafões de plástico transparente, viram um papel ali junto afixado. Os que sabiam ler aproximaram-se para melhor verem o que lá rezava em letras bem desenhadas pelo novo computador ao serviço da junta de freguesia: "Esta água é impotável".

Poucos perceberam o que queria dizer aquilo, e depois de muitos palpites e confusão, resolveram ir à junta tirar tudo a limpo. Não estava o presidente, que tinha sido chamado à câmara, e a senhora que tinha escrito o aviso disse que daí lavava as suas mãos porque foi assim que o senhor presidente escreveu e o computador não tinha assinalado erro nenhum. Ficaram quase todos na mesma e lá foram encher as suas vasilhas, e, embora um tanto desconfiados, lá levaram a água para casa, como sempre costumavam fazer.

Cabe aqui dizer que o presidente da junta era um homem sabedor que tinha tirado a antiga quarta classe, lia o jornal ao domingo de ponta a ponta e gostava bastante de exibir a sua cultura, alardeando, sempre que podia, as palavras que achava serem dignas do cargo que ocupava. Daí o enfatuado "impotável" que resolveu mandar pôr no tal aviso.

O barbeiro, que também sabe ler e escrever bastante bem, embora só tenha a antiga terceira classe, devora pelo menos os jornais das segundas-feiras para saber os resultados e ter pano para as conversas do resto da semana, foi logo chamado ao fontanário para dizer da sua avalizada justiça.

Homem modesto e franco, não pretendendo sair da sua chinela, afirmou logo que, se lá dissesse que a água era potável, isso sabia ele que queria dizer que ela se podia beber, mas impotável não tinha bem a certeza o que era, pois tanto lhe parecia que não se devia beber, como não se podia levar para casa aos potes.

Para maior azar, ou talvez sorte, no jornal dessa segunda-feira, apareceu-lhe, em letra alta e gorda, a estranha palavra "inimputável" logo por baixo da fotografia dum senhor, muito magro e alto que anda sempre sem gravata, a falar de pé de dedo apontado virado para não sei quem.

 

Atendeu o cliente a quem fazia a barba e rapava o cachaço e logo foi a correr à junta falar com o presidente para esclarecer o assunto, porque agora a complicação aumentara e podia haver, sabe-se lá, perigo para a saúde pública.

O presidente que também não fazia a mínima ideia de o que era inimputável, começou a entrar em dúvida e, perdida a usual prosápia de homem letrado, disse que o melhor era mudar o aviso e pôr lá outro que todos entendessem melhor.

"É expressamente proibido beber desta água" foi o cartaz que ele próprio lá foi pôr, esclarecendo muito bem todos os presentes.

Embora ninguém, incluindo o barbeiro, soubesse ao certo o que era "expressamente", desta vez ficou tudo muito bem esclarecido.
 

 

 

*** Louçã, um impotável, disse que um outro qualquer daquela malta era inimputável.

 

 

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