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O meu passamento

 

Já há uns tempos, andava a sentir-me um pouco esquisito. De manhã, fartava-me de olhar para o espelho, interrogando a minha imagem macilenta cheia de fundas olheiras. Abria a boca, deitava a língua de fora e arregalava os olhos, ajudando com os dedos, desesperado, à procura de algum sinal que me fizesse tranquilizar. A língua não estava assim tão branca nem os olhos tão amarelos como isso, mentia-me eu a mim próprio.

Se fazia a barba, o aspecto deixava de ser tão assustador, mas que havia qualquer coisa que não estava bem, isso havia.

O apetite continuava a reduzir-se, o cheiro que chegava da cozinha, infiltrado em todos os cantos da casa, enjoava-me terrivelmente. Esgotado, deixava-me cada vez mais acabrunhar, mergulhado numa poltrona a pensar sempre na mesma coisa, com os olhos pousados num ponto do chão ou pregados numa racha da parede.

Dia a dia mais amarelo, abúlico e alquebrado, comecei a sentir que o meu fim não estava longe. A família, nos cantos, cochichava, julgando que eu já não a ouvia; os amigos diziam-me, em voz alta, com um riso largo, as circunstanciais palavras enganosas aplicadas aos casos considerados perdidos. Que isso não era nada, que o que eu tinha eram nervos e que o que eu precisava era de me distrair, sair, apanhar ar e de deixar de pensar nessas coisas que isso é que me trazia assim.

Eu, distante, quase sem ouvir nem atender ao que diziam, não ligava às receitas que cada um me passava daqueles remédios que lhe tinham feito muito bem.

Os dias passava-os terrivelmente só e vencido, já indiferente a mim e a tudo o que me rodeava. Queria eu lá saber!

Em dada altura, o amarelo começou a passar a verde, um esverdeado seco que, nos meus restos de vaidade, até achava, não me ficar nada mal. As olheiras profundas e roxas que, dia a dia, se iam cavando e acentuando, com aquele verde facial e com aquele pijama amarelo vivo que me deram pelos anos, davam-me estocadas profundas.

As forças, dia após dia, esvaíam-se-me e, agora, com a barba crescida sobre aquele fundo verde, de um tom cada vez mais seco, eu sentia já, à minha volta, um ambiente morno de câmara ardente e parecia ver remotas luzes bruxuleantes de círios com o seu aroma de cera sublimada, numa mistura pestilenta com o perfume de cravos e rosas. Uma espécie do "Tabu" dos anos quarenta ou do "Darling" dos oitenta, passe a publicidade.

Não sei bem às quantas da manhã, de um dia que eu não sei qual e dum ano que não faço a menor ideia se era bissexto ou não, eu passei daquela para melhor, segundo dizem os vivos lá em baixo, ignorando eles, como eu quando estava nessa qualidade de vivo, a verdade contida em tais palavras.

Nunca tinha estado morto, a não ser de sono e de fraqueza. Imaginem, se ser vivo tal ainda vos permite, a sensação de alívio, bem-estar e paz que me invadiu! Sem os tranquilizantes habituais, sem ter passado os olhos por um livro, sem contar um só carneiro, sem ter dado voltas e voltas na cama antes de me acomodar, entrei, moribundamente, no chamado sono eterno.

Desconfiado como sou, mesmo post-mortem, ainda estou para ver se esse sono é mesmo eterno e se não me aparecem agora neste meu novo mundo, que quando eu era vivo chamavam o outro, outros finados barulhentos a chatear-me como se estivessem vivos.

No meu funeral, (que esperava eu?), estava pouca gente, mas estava de tudo. Os que deram abraços mais fortes e trouxeram as mais vistosas flores foram os que durante a vida terrena mais me quiseram lixar. Os amigos verdadeiros limitaram-se a estar calados, serenamente tristes, reprimindo uma lágrima sincera. Do sítio onde eu estava não pude ver se trouxeram enormes coroas flores. Espero que não me tenham feito essa última desfeita.

Aqui, para já, estou francamente bem. Anda tudo de igual, não há carros, não há telemóveis, não há ricos, não há pobres, não há fome, não há doenças, não há guerras, não há manifestações, não há corrupção, não há conversa e, graças a Deus, não há dinheiro.

Mesmo no inferno onde muito justamente, confesso, vim parar, vive-se numa serena e maravilhosa paz. Imagino o que será o Céu!

Apareçam logo que puderem e, como ainda não temos a Internet, tragam-me mais umas folhinhas de papel resistente a altas temperaturas para eu continuar a escrever umas coisas daqui.

 

 

 

*** A hipocrisia fúnebre de muitos que eu julgava serem meus amigos

 

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