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O meu vizinho de cima

 

 

Ele vive só, num quarto exactamente por cima do meu e levanta-se todos os dias,menos aos Sábados, Domingos, feriados e alguns chamados santos, muito antes de o amanhecer, quer chova quer faça sol.

Mal o conheço e poucas vezes nos vemos e, quando isso acontece, poucas palavras trocamos. 

 

Há anos que, manhã cedo, o ouço saltar ruidosamente do que deve ser umacama, ou coisa assim

parecida que esteja a certa altura do chão que nos separa. Nunca ele fez qualquer ruido que me fizesse aperceber que se ia meter na cama. No resto do tempo, quer dizer, no pouco tempo em que ele

está em casa, nunca mais o oiço.

 

De facto, muito à noitinha, por volta da meia-noite, muito mais coisa do que menos coisa, ele regressa a casa e só o oiço a tentar meter a chave na porta e a demorar-se torturantes e infindos minutos a zaranguilhar, zaranguilhar e voltar a zaranguilhar para a conseguir abrir.  

 

Ele nunca bate com a porta, ou porque não quer fazer barulho que me possa incomodar, ou porque deixa uma boa fisga para arejar o quarto, como faz muita boa gente que não tem nada de seu que valha a pena roubar ou que sofre muito de falta de ar.

 

Eu cá também vivo só, mas entro em casa sem quaisquer problemas com a minha fechadura que, de noite ou de dia, sempre fecho bem com as duas voltas da chave.

 

Estou desempregado e, graças a Deus, nem me falta o ar nem gosto nada de trabalhar. Isto é, trabalhar, trabalhar até gostava, mas o caso é que não me apetece nada. Mesmo nada!

 

Vou vivendo como posso e, mais subsídio mais menos subsídio, mais biscato menos biscato, não me perguntem mais coisas que eu não respondo,lá fico eu todos os dias na minha santa caminha até às muitas, já o sol deve ir alto, calculo eu, mas que se lixe o sol, porque estar, muito quentinho, à sombra a pensar em nada é o que eu mais gosto de fazer na vida.  

   

O nosso prédio, que há muitos anos perdeu grande parte do telhado e todos os vidros das janelas desapareceram ou estão partidos, tem quatro bons andares a desfazerem-se, o que é muito bom porque, assim, mais ninguém quer vir para lá morar. Só lá vivemos os dois e, graças a Deus, ninguém lá ousa entrar com a escuridão e a lixeira que vai por aquela pavorosa entrada.

 

Estávamos assim já há um bom par de anos, cada um muito bem na sua vida, eu cama abaixo, cama acima e ele cama muito mais abaixo do que acima, até que, muito intrigado, deixei de ouvir, à noite, o seu longo cerimonial para conseguir abrir a porta do quarto.  

 

Não se despediu de mim, mas eu soube, mais tarde, que ele tinha mudado de casa e que vivia agora num rico andar que lhe cedeu o patrão.

Ao que parece tinha sido promovido lá na firma onde trabalha e, agora, está como nunca.

 

Ele que mal sabe ler e escrever, e nem sequer na Lusófona, nem na Independente, deve ter pensado em chegar a andar, deu um bom salto na vida. Fiquei pasmado!

 

Vim a saber que tinha subido à sua custa e com o seu contagiante esforço. A sua produtividade tinha atingido elevado nível e os seus resultados equivaliam bem aos de, todos juntos, três ou quatro de outros melhores colaboradores da empresa.

 

O patrão respeitava-o e, numa cerimónia em sua honra, onde o apontou como exemplo aos seus colegas de trabalho, resolveu mesmo medalhá-lo numa sexta-feira à tardinha.

 

Toda a gente apareceu e eu, porque alguém por ali soprou qualquer coisa, também fui convidado.

 

Uns concordavam e, claro, os invejosos do costume torceram de cima a baixo todo o seu nariz.

 

Fez-se um palanque para o efeito e havia que subir dois degraus para o alcançar. O patrão, lá em cima, depois de dizer umas comovidas palavras laudatórias, pediu-lhe para subir.

 

Dois colegas mais fortalhaças levaram-no aos ombros e prantaram com ele em cima do palanque bem junto ao patrão. Perdido de bêbado e, todo a escorregar-se por si abaixo, de olho bastante menos do que meio aberto, o meu ex-vizinho de cima ficou estendido aos pés do patrão que, nitidamente comovido, todo se curvou para, muito trémulo, lhe espetar no fato de trabalho uma medalha presa numa fitinha amarela cheia de desenhos de pequenos copinhos vermelhos sem pé. 

 

Quando cheguei a casa, roeu-me a curiosidade e subi ao andar onde ele até aí tinha morado e tanto me tinha chateado, horas e horas, a tentar abrir o raio da sua porta. A fechadura, onde ele deixara pendurada a chave, estava como nova e funcionava às mil e muitas maravilhas. 

 

O que eu acho, e isto é a minha modesta opinião, é que não deviam deixar fazer fechaduras assim, com

um buraco retorcido e tão estreitinho.

    

 

 

 

***

No julgamento de um operário de uma empresa de gestão de resíduos ,

que fora despedido por acusar uns bons miligramas a mais de álcool no

sangue, juízes do Tribunal da Relação do Porto determinaram que ele

fosse readmitido na empresa por considerarem que

"o álcool até pode atenuar as agruras da vida e melhorar a produtividade,.”  ( sic

 

 

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