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O outro lado da ponte

 

Quando me disseram que em Valadares (Vila Nova de Gaia) andavam a alargar a 109, também fui ver.

 

A saturada via de calvário, onde se acumulam carros permanentemente em lentas bichas de caracóis ensonados, onde surdos ensandecidos, cegos de furor e malcriadez, buzinam no campo de batalha, onde se apaga a sede de guerra com jactos de palavrões espumosos de fazer corar os próprios carros de combate, onde estes tantas vezes entre si agressivamente abalroam, onde nas horas de ponta, quando a luta é mais renhida, voam em todas as direcções insultos directos ou perdidos em descontrolados ricochetes, onde no meio da refrega morrem, (não são poucas as vítimas registadas até hoje), inocentes civis indefesos e desarmados que se atreveram, no meio do intenso fogo, a atravessar aquele terrível campo de refrega, a saturada via, dizia eu, segundo os estrategos, vai deixar de ser uma via de calvário para passar a ser uma autêntica via-sacra.

 

Abençoado seja o progresso, dizem os esperançosos inocentes que participam, diariamente, naquela luta fratricida para chegarem a horas a qualquer sítio. 

 

Mas os que vivem (vivem?) na berma da velha estrada que agora se alarga, interrogam-se e benzem-se, fazendo fervorosas preces. Muitos, os de maior religiosidade, de joelhos, adiantam penosas promessas no caso de tais preces serem ouvidas. “Na minha casa, a estrada passa no meio da cozinha”, “na minha o quintal vai ficar cortado ao meio”, “na minha o jardim da frente quase vai desaparecer”, em todas vai acabar o já minguado sossego e, onde muitas vezes, já se comunicava por gestos, falar em voz baixa não mais vai ser possível.

 

Cortaram a velha rua que se cruzava com a moderna via em alargamento, separaram a terra em duas e os velhos vizinhos dos dois lados da estrada, que todos os dias se cumprimentavam e que, a todo o instante, trocavam dois dedos de conversa, ficaram apartados pelo caudal intenso de carros que vieram interromper laços que vinham da remota infância.     

 

Mas esses estrategos, que podiam ter pensado, a sério, não a brincar, numa passagem subterrânea que não cortasse a rua e que atenuasse os estragos do alargamento do campo de batalha, draconianamente, cortaram-na e … quem quiser que se amanhe e vá à volta. Estou a vê-los, folheando revistas e livros de arquitectura moderna, a encontrar, excitados, numa das páginas a solução revolucionária que resolveram adoptar. E, assim, para os peões e pensando predominantemente nos que se deslocam em cadeiras de rodas, imaginaram (ou plagiaram?) uma ponte de atravessamento cujos acessos são verdadeiras atracções turísticas que muita gente vão chamar à terra.

 

Dum lado, uma monstruosa torre, em robusta estrutura de aço, suporta infindos curtos e suaves lanços que permitem, percorridos quilómetros, alcançar a almejada ponte. Quem o consegue chega ao topo com a cabeça à roda, sem atinar onde está o norte, e, sei lá, se não puserem protecções no passadiço, vai escolher, logo ali, o suicídio para resolver de vez o seu martírio, lançando-se sofregamente para a pista de rodagem.

 

Os velhos sem forças, os doentes debilitados e os que receiam andar no carrossel nunca se vão atrever a tal aventura. Os jovens mais ousados vão criar jogos de estarrecer a assistência, que sempre ali se amontoará a passar as tardes, aos gritos, assistindo a novos desportos radicais adaptados àquela tão engenhosa arquitectura lúdica.

 

Os das cadeiras de rodas, esses, não vão ter quem os empurre e, se a cadeira for motorizada, vão ter de acrescentar uns lautos cavalos ao motor que os vai obrigar a tirar a carta.

 

Neste mesmo lado do torreão, à recatada vivenda dum psiquiatra, que lá há muito tempo vivia relativamente sossegado, foi-lhe cortado o jardim e toda a privacidade. De qualquer ponto do novo poleiro se pode ver o que se passa em qualquer recanto da sua casa. Desta, agora, apenas ele vê a ponte. O homem, que está mais afectado que qualquer um dos seus doentes considerados casos perdidos, quando acorda de manhã e espreita pela fisga da janela, julga sempre que está acampado, em Paris, no Campo de Marte em gigantescas obras, aos pés da torre Eiffel.

 

Não está ele só na sua terrível angústia. Toda a longa fila dos seus vizinhos, a quem o desentupimento rodoviário não poupou com sádicas travessuras, no auge de terríveis crises, vem recorrendo, “in extremis”, à urgência hospitalar com preocupantes arritmias e galopantes taquicardias.

 

 Por ironia, entre eles está um cardiologista, meu velho histórico amigo, que anda sob apertada vigilância de colegas da especialidade que lhe implantaram um sofisticado “pace-maker” e que, terminantemente, lhe ordenaram que não se aproximasse sequer das janelas, (que já têm janelas duplas com duas camadas de espessos vidros triplos), que dão para a estrada e que enchesse, até roçar os tímpanos, algodão muito bem comprimido.  

 

Do outro lado não há torre. Em sua vez, não tão imponente mas também impressionante, há, sim, um ziguezague de lanços intermináveis, também muito suaves, que demoram horas a percorrer e que, vá lá, se não vão provocar tonturas, vão, pelo menos, levar ao desespero até os mais serenos de espírito. Esta outra solução vai atrair, por exemplo, os amantes do “skate” que, (nem tudo podem ser rosas), vão pôr em risco a sua própria integridade física e a dos peões mais robustos e afoitos que ousarem atravessar-se-lhes no caminho.

 

Feito o balanço, creio que o número de vítimas, no local, vai aumentar em troca da fluidez do trânsito. Isto é, devido ao imponente carrossel, vai morrer mais gente em cima da ponte do que a que morria cá em baixo atropelada, no velho campo de batalha. Isto, sem contar com os automobilistas desprevenidos que se vão despistar e estampar ao depararem com tão assustadora obra de arte. 

 

Não sei quando vai ser a inauguração, mas esteja eu onde estiver, por favor, avisem-me que quero estar lá cedinho para não perder pitada e assistir, desde o princípio, duma varanda amiga, bem preso a um cinto de segurança e de capacete enfiado até às orelhas, ao grandioso espectáculo de sessões contínuas.

 

 

 

*** Para quem tiver tempo, pachorra (muita) e forças (muitas), vale a pena ir percorrer esta enlouquecedora ponte, onde, se não lhe perdi a conta, se muda 33 vezes de direcção!

Há por aí várias assim.

 

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