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O riso na sua essência

 

Aprecio e, perdoem-me o pecado, invejo aqueles poucos que soltam gargalhadas peitorais, francas e sonoras, sacando dos casos sérios da vida, a saborosa fatia escondida de humor que eles não parecem conter. Mesmo que para essa gente a vida não seja um mar de rosas, uma destas, mesmo já murcha, basta para lhes alegrar a vida e atenuar as mágoas.


Há pobres que sabem rir, (sabem lá eles quão ricos são!), e há ricos a quem a ganância ofusca o humor, (sabem lá eles quão pobres são!), tão obcecados andam com o dinheiro que ainda não têm.
O português é, normalmente, um ser híbrido, mais triste que bem-humorado, que não chora nem ri. Quando muito, “chorri”.


Se é político e está na oposição, maroto, “chorri” por estar tudo negro. Se está no poder, marotão,“chorri” “pelo muito que tem feito, e por tudo o que ainda falta fazer, apesar do enorme esforço, até agora, empreendido”. Esta classe é uma espécie singular que, como se sabe, tudo o que faz diz fazer para o bem do plural.

 

 Os verdadeiros políticos, aqueles a quem assenta como uma luva o sentido pejorativo que, por sua culpa, a palavra tomou, os que só falam, falam e falam, riem-se muito e alto quando estão bem comidos e acomodados. Por hoje, vamos deixá-los em paz, que bem a merecemos.


O português comum, o suave, ri-se, muitas das vezes, por conveniência. Ri-se com as estafadas graças sem graça do seu superior hierárquico. Ri-se, por tabela, mal começa a rir aquela gente fina, que está sentada nos “fauteuils” a seu lado na Semana do Teatro Francês, quando esta já tinha principiado a rir, assim que se começou a rir lá ao fundo, na coxia, aquele senhor nitidamente francês, de olho azul e calças “bordeaux” aos quadrados verdes, só porque lhe deu na gana rir por qualquer coisa “drôle” que lhe disse a sua mulher, provocando ambos, involuntariamente, uma falsa partida em toda a sala culturalmente indecisa.


Nas mesas redondas da TV e noutros conhecidos palratórios públicos, os intervenientes enchem a boca com riso, quando qualquer outro dos arredondados intervenientes diz algo a que eles não querem ou não sabem responder. Seguindo à risca o manual da etiqueta de que todas as noites lêem duas páginas antes de adormecer, sabem que nunca se deve falar com a boca cheia e, por isso, precavidamente, enchem-na de riso.


Por aparência, para exibir o seu intelecto fosforescente, riem-se às escuras no cinema, nos chamados filmes de intervenção, (aqueles onde ninguém come pipocas aos baldes, nem põe os pés em cima da cadeira da frente), apesar de não estar a perceber nada do filme e, muito menos, qualquer tipo de piadas menos grosseiras.

 

 Felizmente que, para lhe dar a entrada, há sempre alguém na penumbra, da chamada classe intelectual superior, que se desmancha a rir por excelência, para ostensivamente exibir quão perspicaz é, que até as piadas subtis consegue descortinar.


O português, era inevitável, também se ri às claras, neste caso, muito, se for por indecência. Ri-se porque aquele senhor muito bem aperaltado apanhou com a água toda duma enorme e conhecida cova cheia de água mal cheirosa que o autocarro, bruto e corpulento, deliberadamente pisou. Ri-se porque a bola com que os miúdos jogavam acertou em cheio no boné do polícia distraído. Ri-se porque aquele sujeito gorducho, baixinho, careca e de passo ligeiro, anda, sem saber, com as calças descosidas de alto a baixo, deixando ver na íntegra o que todos conhecem e, normalmente, só se deixa adivinhar.


Também se ri por carência. Ri-se, por exemplo, ao lado da mulher e da filha mais velha, ainda perigosamente solteira, com o drama das comédias feitas à sua conta e medida e com os enriquecedores concursos estupidificantes que as televisões lhe oferecem, nos curtos intervalos que a publicidade, aos berros, lhe deixa livres.


Também se ri, e muito, com indomável incontinência. Isso acontece-lhe nos agonizantes jogos sem fronteiras, nos coçados malucos do riso e noutras inconsoláveis situações.


Igualmente se ri por inocência e por inconsciência de que, deliberadamente, não dou exemplos, para não magoar ninguém e como medida de precaução. É que este é o riso mais perigoso que existe, mesmo contando com o amarelo esverdeado. Pega-se como visco fresco, alastra como fogo em dia quente e ventoso, e não há, nem tão cedo vai haver, um “antirriótico” que faça, sequer, cócegas a essa inexorável e sisuda espécie de vírus.


O que mais receio é que com esta anedótica vida que levamos, acabemos todos a andar por aí, de ar baço e esbugalhado, a rir como uns parvos já a roçarem o estado de completa demência.
 

 

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