top of page

Olho por olho

 

Um querido amigo do meu pai e meu, o Fred, como lá em casa todos familiarmente lhe chamamos, viúvo, septuagenário, respeitável engenheiro civil ainda activo, em excelente forma, física e mental, com farta cabeleira grisalha que faz questão de não pintar, que ainda come com todos os dentes de origem, lê o seu jornal sem óculos sem ter de esticar os braços e caminha mais ligeiro que um lebre acossada, o Fred, dizia eu, teve, na praia, aqui há dois anos uma tontura que o desequilibrou e quase fez cair o que, a princípio, muito nos preocupou.

Felizmente, e só porque o meu pai o amparou, não caiu sobre umas beldades que se bronzeavam até à combustão, cheias dum fraquinho factor 2 muito bem espalhado, todas elas em discreto "topless" e enfiadas, pudicamente, em invisíveis fios dentais.

"Ó homem, deu-te alguma tontura, não viste as moças?" perguntou o meu pai, muito menos zangado do que preocupado.

"Se vi!", disse ele, "Por que raio achas tu que tive a tontura? E também por que raio me agarraste, à bruta, com essa tua força toda?"

Mas a verdade é que outras tonturas se repetiram, depois deste incidente de orla marítima, noutros locais e em circunstâncias aparentemente anódinas. Lá o convencemos a fazer um "check-up", coisa a que sempre foi avesso, dizia ele que para não arranjar oficialmente uma doença. Vencido pela realidade dos factos, o meu pai, que sempre o acompanha, lá o conseguiu levar a uma conhecida clínica privada, nada barata diga-se, cheia de conceituados médicos, quase todos circunspecta gente de meia-idade.

Depois de ter passado, com vinte, por uma série de testes em várias especialidades, numa triagem extremamente rigorosa, chegou, por último, a altura de ir ao oftalmologista. Desta vez, calhou-lhe um jovem, a rondar os vinte e tal anos, barbicha curta e caneta de ouro com tinta preta presa no bolso superior da esmerada bata, muito branca e sem uma ruga. Fixei, ao entrar, o seu nome estampado numa placa, de latão a espelhar, colada à porta: Doutor Manuel Pires de Lemos e Castro – oftalmologista. Reparei, depois, que no alvo bolso onde tinha a tal caneta dizia, em fino bordado a azul: doutor Lemos e Castro.

Como os seus colegas das outras especialidades até aí haviam feito, começou por preencher uma ficha. Nome: Alfredo Alves de Matos; Data de nascimento: 15 de Maio de 1930; Profissão: engenheiro civil. Doenças anteriores: bexigas loucas e sarampo.

"Então, senhor Alfredo, que o traz por cá?", disparou o neófito, levantando os olhos da ficha e dirigindo-os para os do cliente. O meu pai de imediato agarrou no Fred, antes que lhe desse uma tontura fatal e, com ligeireza, arrastou-o de costas, pelos sovacos, a derrapar nos bordos posteriores dos tacões, pela porta fora do consultório. "Desculpe senhor Manuel, mas o meu amigo não se está a sentir nada bem", ainda conseguiu articular o meu pai à saída da porta.

Surpreendentemente, desta vez, o Fred não teve qualquer tontura mas, não só ele como o meu pai, ficaram cheios de comichões e com espasmos que os puseram a babar-se abundantemente. Passada esta crise aguda que ambos atacou, o Fred e também o meu pai, logo ali na clínica, decidiram retornar ao otorrino para que este lhes fizesse, a ambos, uma boa lavagem aos ouvidos por julgarem que não estavam a ouvir nada bem. Afinal, nem um nem outro tinham pinga de cera a mais e, com malícia e um aberto sorriso profissional, disse-lhes que eles só não ouviam aquilo que não queriam ou não lhes convinha ouvir.

À pressa, pagaram, esquecendo-se de pedir o chorudo recibo para o IRS, e saíram da clínica esbaforidos a correrem como loucos, alheios aos carros ainda mais loucos, sem olharem um só segundo para trás.

O Fred, que passou a usar, sempre, chapéu de palha de aba larga desde que um entendido lhe disse para não apanhar tanto sol na cabeça, nunca mais teve tonturas. O meu pai, que é um sadio coronel reformado, esse, anda, desde então, com o olho esquerdo tapado com uma apiratada pala preta, por ter tido um derrame e não quer sequer ouvir falar em ir a um médico da vista.

"Pra me chatear, bem um olho me basta", despacha ele, marcial, autoritário e peremptório, quem, como eu, o quer demover.

 

 

 

*** Há médicos (e não só) assim.

 

bottom of page