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Onde estava eu?

 

Todos os anos, por Abril, em quase todos os meios de comunicação social são interpeladas pessoas, de meia-idade a passar, com a fatal pergunta: “ Onde estava no dia 25 de Abril de 1974? ”

 

 As respostas puxam todas ao revolucionário e quase não aparece ninguém que não diga ter intervindo, duma maneira ou doutra, sempre mais activa do que passiva, (pelo menos saindo para a rua aos pulos ou trepando às árvores), na conquista da Liberdade e no fim de 48 anos de ditadura.


Nunca vi, por me ter escapado ou por tal possibilidade, probabilisticamente, ser bem possível, aparecer alguém que tivesse a frontalidade de dizer:


“Olhe, eu na altura era inspector da PIDE e, quando soube, estava de serviço a dar umas boas biqueiradas e uns lautos sopapos num tipo que estava no dia 23 à tarde no “Café Estrela Dourada”, no Montijo, a mandar umas bocas surdas acerca do senhor professor Marcelo Caetano e daquele outro senhor, de que já não me lembra bem o nome, que era ministro, julgo eu, das Corporações. Que era alto, muito careca e de cara redonda lembro-me bem eu, agora o nome …”.


Ou alguém soube de alguém que tivesse a coragem de confessar:


“Ora, deixe-me ver, deixe-me ver … Ah! Já sei. Estava no alfaiate a fazer a primeira prova duma farda da Legião. A outra, que me tinham dado há mais de seis anos, estava-me já tão apertada que se rasgava toda todas as vezes que eu me abaixava para apertar as botas. A minha mulher estava já cheia de lhe dar pontos. Ainda tenho guardadas no guarda-vestidos as peças cortadas e alinhavadas. Não cheguei a fazer a segunda prova e o alfaiate, homem muito honesto, só me levou pelo feitio. Se o dia 25 tivesse calhado a 29, lá tinha eu também de pagar os forros”.


Também nunca vi aparecer alguém, desinibidamente, a dizer:


Sim senhor, lembro-me muito bem. Tinha eu saído no domingo anterior aqui das Caldas, a pé, com a minha patroa e mais três casais amigos lá do Sindicato, para pôr flores e rezar pela alma do senhor doutor Salazar que está enterrado em Santa Comba, não sei se o senhor sabia.”


Ou alguém ouviu aquele outro, que era motorista privativo do Presidente da Câmara de Castelo da Cabra, dizer sem peias:

 

“Nesse dia, recordo-me eu bem, fui levar o Senhor Presidente da Câmara a Lisboa a casa do senhor Presidente do Grémio das Pescas por causa daquela homenagem que queríamos prestar ao senhor Almirante Tenreiro, que me meteu lá na Câmara, por recomendação do meu padrinho de baptismo que era muito amigo dele e podre de rico. Esse meu padrinho tinha uma serração mecânica em Moscavide e outra nos Carvalhos, lá para cima, perto do Porto.”

 

Quando vejo aqueles filmes de arquivo muito antigos com Salazar a ser aplaudido por magotes de gente em delírio, interrogo-me: Onde raio se escondeu aquela gente toda? Se calhar foram todos à manifestação contra o Le Pen. É o mais certo.


Permitam-me agora fazer um apelo:

Se alguém souber de alguém que tenha tido a coragem de ter respondido a verdade à usual pergunta de Abril, por favor, informar para: Apartado 25041974, código postal 007-Sarilhos Passados.


Muito obrigado.

 

 

 

 

   ***Em Portugal já não há fascistas.

 

   ***Lembrei-me muito mais tarde: o nome do tal Ministro das Corporações careca e de cara redonda que referi era  Gonçalves Proença.  Aparecia muitas vezes na RTP, talvez mais vezes que o próprio Cardeal Cerejeira!

 

 

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