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Os Marretas

 

Durante os meus primeiros anos, vi episódios e mais episódios da célebre série “Os Marretas” que passava regularmente na televisão. Ainda não devia ter um anito, não caminhava e nem uma palavra sabia articular, e já o meu pai, comigo sentado ao colo, acompanhava com francas gargalhadas todas as peripécias que se iam desenrolando. Eu estava inteiramente absorvido com toda aquela colorida bonecada que julgava ser gente e bicharada falante mesmo a valer.

 

O meu pai fazia-me saltar no colo durante as suas explosões de júbilo e, após cada cena, buscava em mim um sorriso, como se quisesse assegurar-se que eu estava a acompanhar o enredo, absolutamente esquecido que tinha ao colo um miúdo que, em mau português, só uma, ou, vá lá, duas palavras sabia dizer.

 

A minha mãe, sempre lá para dentro atarefada, de vez em quando e todas as vezes que o ruído na sala aumentava, entreabria a porta para ver o que se passava e, com um olhar encantado, olhava muito bem a minha cara com um sorriso meigo que nunca mais poderei esquecer. Não se retirava, sem um “Vê lá se, com essa alegria toda, me deixas cair o menino ao chão”, dirigido ao meu pai, que mal a estava a ver ou a ouvir, com os olhos presos no ecrã. 

 

Fui crescendo e os meus outros irmãos e irmãs, ao todo somos oito, se seguiram tomando, o mais novo, o lugar no colo paternal deixado vago pelo rebento anterior. 

 

Lá se repetia sempre a cena com a minha mãe, que eu durante castos anos julguei ter uma barriga insuflável, a aparecer à porta para distribuir e receber sorrisos de toda a miudagem, repetindo rotineiramente aquele aviso ao meu pai.

 

Uma vez, já tinha os meus vinte e tal anos, enchi-me de coragem e perguntei à minha mãe por que quis ter tantos filhos, nos tempos difíceis que sempre vi correr: “Olha, meu filho, o prazer que tenho em ver os sorrisos inocentes das crianças, para mais meus filhos, compensou bem todos os sacrifícios e canseiras que tivemos para vos criar!”

 

Quando me enchi ainda com mais coragem, fiz a mesma pergunta ao meu pai, contando-lhe a resposta que a minha mãe me tinha dado. Ele, que tinha, e continua felizmente a ter, um elevado sentido de humor, de imediato, respondeu-me: “Se a vossa mãe tivesse tido tempo de ver “Os Marretas” e gozado, como eu, com todos aqueles vossos sorrisos de criança, fica certo que não tínhamos ficado por ali”.

 

O meu pai e a minha mãe têm agora uma creche para colherem sorrisos e uma escola de planeamento familiar, para aconselharem os casais mais sisudos a ter pelo menos um filho, (nem que seja adoptivo), para apreciarem bem quanto vale um sorriso de criança e, de crianças, legitimamente, poderem então falar.       

 

 

***

    Francisco Louçã, o aborto e o sorriso de uma criança.

 

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