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Os membros inferiores

 

Eu andava sobre brasas. Quase todos os sapatos me magoavam e dar uns passos era para mim um autêntico martírio. Voltei ao afamado ortopedista que trata eficientemente dos preciosos joelhos dos futebolistas milionários deste mundo civilizado em que vivemos e os dos que, como eu, são tesos e não sabem dar um chuto, que se lixe o dinheiro!  

 

Aqui há uns três anos, esse mesmo homem já me tinha meniscado um joelho e ainda se lembrava da minha agora algo mais amolgada lata. Perguntou-me que tal me sentia do joelho que me tinha operado. Respondi-lhe que ainda sentia umas dorezitas, nada de preocupante, a idade não perdoa, vá pondo uns saquinhos de ervilhas congeladas que a coisa disfarça. À minha pergunta se sacos de favas também serviam, prontamente, respondeu que não! Ervilhas, só ervilhas e das pequeninas, acentuou ele. Como as ervilhas me fazem muitos gases, se um dia a coisa me começar a chatear mais, mando as ervilhas à fava e vou mas é pôr o saco de gelo que sempre tenho no congelador, para o que der e vier.     

 

Desta vez, prevenido e para ganhar tempo, já levava comigo umas radiografias do meu pé achacado. Não olhou para elas. Sorridente, (o homem é muito simpático), dum jacto enxotou-me, receitando uma ressonância magnética (RM) e  quando tiver a RM, marque a consulta e apareça por cá. À saída deixei, na recepcionista, 90 euros da tabela em vigor, o que, ao câmbio actual, equivale aí a uns oitenta, oitenta e cinco sacos de ervilhas muito redondinhas e duras.

 

Juntei umas massas e, já refeito, fui fazer a dita RM, ali muito pertinho, na mesma rua. Paguei adiantado cerca de trezentos e tal sacos de ervilhas, mais ervilha menos ervilha, e venha buscar o exame a partir da próxima terça-feira.  

 

Dias depois, logo na tal terça-feira, humildemente com a RM na mão, pé ante pé, lá reapareci eu no tratador de pernas,  depois de na sala de espera ter visto, totalmente de graça, excertos duma telenovela qualquer onde uma garotada de todos os sexos oficializados e dois tipos já espigadotes andavam envolvidos numas intrigas muito complicadas em que eu, mais que vacinado, não me consegui envolver.

 

Entrei no consultório, sentamo-nos, tracei a perna, falamos, e passei-lhe o enorme lote de ressonantes negativos que me tinham tirado aos macabros ossos do meu estuporado pé. Passei-lhe, juntamente com as fotos a preto e branco, o relatório que as acompanhava e que eu, previamente, li e reli mirando pelos quatro lados da folha de papel A4 sem, de qualquer destes, ter percebido a ponta dum muito duro e perigosamente aguçado objecto que normalmente ornamenta a cabeça dos bois que se prezam.

Na sua imaculada bata, com um brando sorriso, o famoso ortopedista deu uma vista de olhos por todo aquele estendal fotográfico, o mesmo fazendo ao hilariante relatório que eu vou mandar encaixilhar para pendurar junto ao bengaleiro logo à entrada da porta de casa.

 

Sem mais, a não ser a esferográfica, pega num cartão dos seus e, no verso, escreve um nome e um número de telemóvel. Passa-me o cartão e, sempre sorridente, diz-me assim: 

“Vá a este meu colega que ele, em pés, é um  barra”. Depreendi que ele, nos seus pés, deve ter algum barro.

Ao sair, eu queria pagar a proveitosa consulta mas, gentil, a senhora recepcionista disse-me assim: 

“Não é nada. O senhor doutor nunca leva dinheiro por apreciar relatórios e exames que ele próprio manda fazer”.

 

Inadevertidamente, esquecido dos meus achaques, dei um enorme pulo. Esborrachado no chão e a torcer-me de dores no joelho, logo pedi que me fossem buscar dois sacos de ervilhas muito geladinhas ali ao Pingo Doce que fica mesmo em frente. Tive sorte:  estavam em promoção e ainda por cima fiquei habilitado a um Audi dos grandes que, se me sair, como bem espero, vai ser todo amarelo, inclusive as jantes e os pneus. (Os vidros vão ser levemente fumados porque eu modestamente não quero ser visto).

Todo dorido, levaram-me para casa com um saco em cima do joelho e o outro muito bem coladinho na testa o que fez que, pelo menos para já, não sinta qualquer dor no meu tão malfadado pé.

 

 

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