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Outra vez na Casa da Música

 

 

Aqui há uns meses, já nos fins do ano de 2014, fui ouvir e ver tocar a conhecida pianista Valentina Lisitsa, uma ucraniana de origem, naturalizada estado-unidense. Não venho aqui falar dos seus mais que bem conhecidos dotes. A música é outra e eu quero aqui cantá-la.  

 

A sala estava como um ovo e só consegui arranjar lugar algo longe do palco, muito lá no cimo da conhecida Sala Suggia. Ao meu lado esquerdo sentaram-se duas jovens senhoras, uma aí nos seus trintas, a outra ali nos seus quarentas. Mais à esquerda não estava ninguém, a não ser gente avulsa que, de passagem, andava em busca do seu lugar; aí estava a coxia arrampada que tem uns degraus muito suaves, acessíveis a qualquer trôpego de grau não muito elevado.  

 

Antes de entrar Valentina, as minhas companheiras de fila palraram, palraram, palraram, muito discretamente, diga-se. Nem uma só palavra das que trocaram, e foram elas muitas e continuadas, consegui eu alinhar uma só frase, até porque, para tal, nem um só pouquinho me esforcei.  

 

As luzes começaram a esmaecer muito docemente e logo veio a voz da senhora portuguesa a dizer Bem-vindos à Sala Suggia da Casa da …  e mais isto e mais aquilo, logo seguida da voz do mister inglês a dizer Welcome to Sala Suggia at Casa da …  … and this and more that.

 

A sala estava agora numa muito agradável e calma penumbra, com o palco suavemente iluminado onde se destacava, com uma luz algo forte a incidir-lhe, o elegante piano com a sua tampa caudal aberta aí a uns 45 graus, mais minuto menos minuto.  

 

Silenciadas aquelas melómanas gentes e abafadas as últimas tosses, no meio de muitos e muitos aplausos entrou, elegante, sorridente e ligeira, Valentina que foi distribuindo suaves vénias em várias direcções e sentidos para cumprimentar todos os que, como eu, ali a foram ouvir.

 

Primeira parte

 

Sentou-se Valentina no seu banquinho, ajustou-o e reajustou-o, ajeitou-se e reajeitou-se ela também, e com os seus olhos suavemente fechados, depois de se ter isolado deste mundo por uns bons dez ou quinze compassos, sem mais nada fazer, começou finalmente a carinhosa tarefa de afagar todos aqueles tímpanos ali presentes, desde os muito escrupulosamente lavados até aos mais vergonhosamente encerados, dos mais elásticos até aos mais rígidos, incluindo os meus, que, quer higiénica quer auditivamente falando, ficam um bom bocado acima do meio da tabela.      

 

Depois de uma última e já saudosa mirada para o ecrã cheio de bonequinhos coloridos do seu inseparável telemóvel de última geração, a minha vizinha mais chegada enfiou a aparelhagem na sua carteira.  Deixou esta com a boca aberta voltada para cima para, através da abertura bocal , de vez em quando, poder enfiar o canto do olho para dar umas miradas no ecrã do seu bem aconchegado telemóvel.

 

Caladas e serenas, ficaram à espera de ouvir os primeiros acordes.

 

Valentina tocou muito bem e veio o intervalo.

 

Com as duas licenças que pedi, saí para ir lá fora enfrentar, com coragem e grande valentia, a gigantesca tarefa de abrir a descomunal porta que dá acesso à região demarcada H,  destinada aos Homens.   

 

Regressei subindo sem esforço a rampa e, após duas novas muito educadas licenças, sentei-me no meu lugar, verificando cuidadosamente se o assento deslizante estava bem encaixado na ranhura de fixação.  

 

Segunda parte

 

Valentina voltou e, no curto caminho até o piano, muitas mais palmas ouviu do que da primeira vez. Estavam a gostar. Com o mesmo ritual da primeira parte, sentou-se ao piano para continuar a sua actuação.

 

Aí a meio desta segunda parte, tocava Valentina lá em baixo, ouvi a voz algo abafada da minha vizinha do lado dizer para a sua companheira: “o Quaresma meteu um golo!”

 

Eu, que sou um portista ferrenho, ainda a tempo, mas já mesmo mesmo em cima da linha, lembrei-me que não estava no Dragão e ainda fui a tempo de não me levantar aos assobios com dois dedos enfiados na minha boca e a bater fortíssimas palmas com todas as minhas mãos.

 

Aposto que Valentina nunca mais iria esquecer o meu querido Porto, a terra onde ela tinha recebido a mais vibrante e acalorada ovação de toda a sua vida artística, para mais vinda de um só artista que, numa noite de futebol, perdeu um jogo, (que o F. C. Porto ganhou), para ir vê-la tocar.  

  

 

 

*** 

Mal acabou o concerto, as minhas companheiras laterais, no meio dos acalorados aplausos, que eram para Valentina, apressadas escaparam-se pela porta de saída mais próxima.  

Extraprograma, já deviam elas ir lá muito longe, a gentil Valentina tocou para os muitos que ficaram quatro lindas peças, daquelas de que toda a gente gosta.  

 

 

*** 

Quaresma é o nome de um bem conhecido avançado do F.C. Porto.

 

 

 

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