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Outros caminhos

 

  As batalhas ferozes e sem tréguas que, dia e noite, se travam nas nossas estradas, ceifam indiscriminadamente, numa macabra e imparável roleta russa, vidas de toda o tipo, desde as das vítimas mais inocentes até às dos criminosos mais conscientes.

Nem de longe, apenas pelas mortes que produz, se ficam por aqui os terríveis e irreparáveis estragos que essa luta fratricida produz.

Essa batalha sem fim, ao contrário das outras, em que cada dia que passa tende a diminuir o número dos contendores, dos armamentos e das munições até à rendição de uma das partes, vê aumentar o seu número e a sua sanha destruidora. Cada vez mais, martiriza, amputa, disforma, inutiliza e castiga mais gente sem atender nem à timidez, nem ao arrojo, nem à ferocidade de cada um.

Prende numa cama, senta na cadeira de rodas, apoia em bengalas, deforma, estropia, amputa e torna inválido um número cada vez mais impressionante de gente. Destrói a felicidade de famílias inteiras, desvanece sonhos, desfaz esperanças, destrói futuros, termina de vez com a alegria de gente que era ou ambicionava ser feliz.

Noivos que não chegam a casar, filhos que não chegam a nascer, irmãos que já não têm com quem brincar, homens que tratam agora dos filhos, mulheres que ficam sem pão que chegue para lhes dar, órfãos que não mais vão ter quem lhes dê amor, pais que ficam sós e amargurados sem terem a quem o dar.

Vão aumentar as penas para punir os criminosos, anuncia-se. Mas, se com penas mais duras se educassem os povos, pareceria que, em vez de escolas havia que construir mais prisões, em vez de professores haveria que formar mais polícias e, em vez de criar abertos parques e jardins, haveria que fechar espaços para fazer sinistros campos de concentração. No limite voltava a pena de morte e, pelo meio, regressavam os trabalhos forçados e a prisão perpétua. E tudo ficava, não como dantes mas, pior que nunca.

Apreender a carta, aumentar a multa, meter na prisão, são sempre as soluções escondidas na manga de toda a gente. Mas, põe-se logo a questão: quem tira a carta, quem passa a multa, quem ordena a prisão tem capacidade e idoneidade para o fazer? Não estão entre esses os muitos que fecham os olhos aos "amigos", os que fazem a continência ao senhor coronel e o mandam seguir pedindo-lhe imensas desculpas que ele, condescendente e generoso, aceita?

Não estão entre esses os super-zelosos, os desonestos e os prepotentes que empolam ou inventam transgressões? Não estão também os que se dedicam apenas à caça porque os mandam caçar ou porque gostam eles próprios da caça para exibirem os seus troféus?
 

Os tristes casos ocorridos em Albufeira e em outros sítios que logo apareceram por arrastamento, que parece e espero devam estar a ser investigados, deram uma estocada final em toda essa gente que nos devia merecer inteira confiança, respeito e pleno apoio. Não mais a coisa funcionará. Não mais deixaremos de pensar se quem nos pede os documentos está para nos proteger e para nos ajudar, ou se nos quer tramar e anda ali para muito bem se safar. Os dignos, os honestos, os cumpridores, os íntegros têm de sentir-se envergonhados e constrangidos e, não mais, poderão exercer a sua tarefa sem sentirem algo que os amachuque e faça retrair. Foram definitivamente vencidos e humilhados. Com um exército assim, todas as batalhas estão antecipadamente perdidas e nunca esta guerra tão sangrenta, um dia, poderá ser ganha. Quando todas as Albufeiras forem corrigidas e vierem um dia a merecer a nossa confiança, pense-se então em novas e mais severas penas.


A multa, a apreensão da carta, o desterro, a tortura, a prisão perpétua, a pena de morte, tudo isso nunca passará de mezinhas que só servem para prolongar a doença dum enfermo em coma, bronco e teimoso, que não quer ser tratado.
Há que pensar noutros mais estreitos caminhos com vistas mais largas.

 



***
NOTA:

 

A conversa é longa e o PÚBLICO, sem desfigurar a coisa, cortou umas coisitas a este tenebroso romance que para lá mandei.

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