top of page

Pelas ruas da amargura

 

Vem aí um novo “Código da Estrada”.

Vi, numa publicação dedicada a automóveis, o levantar do véu de algumas das novas regras que se prometem para meados de Março. O objectivo parece ser reduzir para metade o número de vítimas mortais nos próximos anos. Não sei, pelo que pude ler, se os estropiados, que julgo ser a maioria das vítimas imoladas, estão incluídos nos ambiciosos propósitos. Igualmente ignoro o que se entende por próximos anos. São dois, quatro, seis, oito ou oitenta?


Merece o meu inteiro acordo tudo o que de racional e límpido procure atacar uma vasta série de infracções, mais ou menos criminosas, demasiado conhecidas e badaladas, como a velocidade, o álcool, o estacionamento selvagem, o desprezo dos sinais, o uso dos telemóveis, etc., etc.


Fiquei, todavia, pasmado com alguns dos novos mandamentos, não apenas porque já os julgava pontos mais que estabelecidos, mas pelo que de espantoso eles me vêm revelar.


Vejamos só três exemplos alarmantes e digam-me se não ficam tanto ou mais abismados que eu. Benzam-se.


Primeiro: passará a ser contra-ordenação o automobilista ou o passageiro atirar beatas ou quaisquer objectos incandescentes, (suponho eu que foguetes e outro armamento ígneo quando activado), para o exterior dos veículos.


Depreende-se desta nova directiva que continua a ser admissível, sem cometer grande pecado, atirar de tudo pela janela fora: papelada, embalagens plásticas, latas, beatas bem apagadas, cascas de todo o tipo de fruta, incluindo, avantajadas peças inteiras, como o melão e a melancia, quando estas derem fortes sinais de estar podres ou estiverem ainda verdoengas.


Segundo: estacionar em cima das passadeiras ou dos passeios, impedindo a passagem dos peões, pode levar à apreensão da carta de condução.


Depreende-se que, se os transeuntes conseguirem passar à rasca, porque são magrinhos ou contorcionistas, ficamos vergonhosamente como até aqui, e, apenas se aparecer um mais gorducho ou trôpego que, ao fim de muitas tentativas infrutíferas, não consegue passar, o prevaricador pode ter a sua a carta apreendida.


Não se depreende ainda se o corpo do delito, a carripana transgressora, continua onde estava a importunar mais peões, ou se é logo dali retirada com o habitual aparato, acompanhado com aplausos e bocas de uns e vaias e grandes bocarras de outros. Também não sei se os peões, que foram obrigados a descer à rua para prosseguir o seu sinuoso e aventuroso caminho, são admoestados e até punidos se forem atropelados na rua a que tiveram de descer por outra viatura em movimento que ia dentro das regras no sítio que lhe está destinado.


Terceiro (deixei este para o fim, por ser de todos o mais inconcebível e saboroso): saber ler e escrever passará a ser obrigatório para a obtenção da carta de condução, deixando os iletrados de poder requerer exame oral.


Depreende-se um turbilhão de coisas alucinantes das quais destaco:


Que, até agora, havia condutores analfabetos que tiraram a carta porque se desenrascaram com o seu fluente e influente palavreado.


Que, daqui em diante, muito menos gente vai poder tirar a carta legalmente.


Que vai crescer acentuadamente o número de pessoas totalmente ignorantes, mas inconscientes e audazes, a guiar sem terem a carta.


Que vai aumentar muito significativamente o número de acidentes provocados por este novo tipo de condutores letrados, absorvidos no exercício de soletrar o que lhes aparece pela frente, incluindo as placas indicadores, muitas delas já de si confusas e até enganosas, mais os vistosos e atraentes anúncios que as autoridades permitem sejam colocadas junto às estradas.


Que, com o novo código, vai passar a morrer muito menos gente sem saber ler nem escrever!


Voltem, por favor, respeitosamente a benzer-se.

 

 

*** Vinha aí um Novo Código da Estrada. E veio.

 

bottom of page