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Pimenta na língua

 

A ideia de dizer coisas só para baralhar espíritos, onde até os aparentemente mais fortes se deixam apanhar, é o negócio chorudo de alguns que assim vão vivendo, à margem dos acontecimentos, à custa da sua maquiavélica e rendosa imaginação.

Lançam atoardas de todos os tipos, dizem verdades que parecem mentiras, atiram mentiras com uns laivos de verdade, jogam mentiras cem por cento puras, servem-se de tudo para, assim, enredarem e alimentarem infindos folhetins que continuam sempre no próximo número até se arranjar outro tema que faça enterrar ou pôr em banho-maria o anterior.

Mentir para alguém desmentir, repetir ou alterar a mentira, dizer pelo meio uma verdade para confundir faz ir vivendo alguns e mantém o país entretido, inconsciente e alheio à verdade dos seus problemas.

Em dada altura, o enredo foge deliberadamente aos seus autores, como acontece em certas telenovelas interactivas, onde o final acaba por ser escolhido por votação por pessoas alienadas que dedicadamente as vão consumindo, conforme os seus gostos pessoais e para seu interno descanso.

Uns querem um fim feliz com uma marcha nupcial em fundo, outros exigem que matem o mau da fita ao som duma metralhadora, outros sugerem que a tia rica caia, sonoramente, da janela do sexto abaixo, para deixar tudo ao sobrinho, outros que essa mesma tia, pela calada, fuja com um moço da idade do sobrinho, para que este, um valdevinos, acabe por ficar, de nariz no ar, sem meio cêntimo furado.

Mente-se para viver e vive-se da mentira. Os que usam a verdade, os que nada escondem, os que encaram de frente os problemas, os que querem fazer algo assente em bases sólidas onde se ergam paredes robustas, enfim, os que cumprem escrupulosamente o seu dever encontram pelo caminho obstáculos de toda a ordem e até armadilhas traiçoeiras, para que a sua iniciativa se extinga e o seu trabalho não vingue.

Não interessa a verdade, a limpidez, o esforço empreendedor honesto nem a clareza dos processos. Com a mentira, para proveito próprio, criam-se barreiras, dificultam-se movimentos, abortam-se iniciativas, desencorajam-se vontades. Mentir é tarefa dos que se movem nos pântanos que conhecem palmo a palmo onde, à vontade, saltitam e dos que se movimentam afoitamente nos campos por eles próprios minados.

Assim acontece, nos reinos da política trepadeira, nas repúblicas dos cachos de bananas pendentes, nos principados do salve-se quem puder, nos emiratos do anti-desporto, na anarquia generalizada que se pretende instalar.

Sempre se mentiu, mas julgo que cada vez se mente mais e melhor; numa palavra, profissionalmente.

Recordo as trocas de galhardetes entre miúdos e gente crescida da minha geração, em que chamar mentiroso a outrem constituía uma ofensa grave que criava uma discussão acalorada que raramente acabava bem. Os mentirosos eram conhecidos, apontados a dedo e tinham muito baixa cotação.

Os pais educavam os seus filhos segundo uma cartilha rígida em que mentir era um dos maiores pecados. Repreendiam-nos centos de vezes, não se mente que é feio, não mintas que te cresce o nariz, se mentires não te levo ao cinema, quem mente fica com os olhos tortos, olha que vais para o inferno, Deus castiga os meninos mentirosos, etc., etc.

Os pais mais severos intimidavam com o cinto de couro, as mães, não menos severas, ameaçavam deitar na língua do destemperado mentiroso uma especiaria, altamente temida e extremamente eficaz, trazida das índias pelos nossos valorosos antepassados, chamada pimenta.

Diz ainda muito ingénua gente, na sua ultrapassada sabedoria, que se apanha mais depressa um mentiroso que um coxo. Ignoram, candidamente, que os mentirosos de maior sucesso andam, hoje, na primeira dos aviões e em velozes automóveis de primeira, e que, em caso de apuros, como último recurso, se fazem coxos de grande amplitude que ninguém consegue apanhar.

 

 

 

*** O Mundo dos mentirosos não pára de crescer

 

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