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Por favor, digam-me a verdade

 

Quase todos os dias me vêm dizer que vamos na cauda de mais um qualquer pelotão, nesta disputa sorna em que aparecemos envolvidos com gregos e alguns troianos infiltrados. Impressiona ver passar toda esta gente alheada da competição, certamente iludida e confortada pelo entorpecedor aforismo de que "os últimos são os primeiros".

 

 Em passo de passeio, a rir e a falar descontraidamente, como se nada de anormal se passasse, poucos avaliam o atraso que já levamos em relação aos que, lá à frente, já cortaram a meta ou a têm à vista.


Desde que se ouviu falar em Liberdade, outrora uma temível palavra de que poucos entendem o verdadeiro significado, alguns abusivamente tomaram-lhe os pulsos e contestam libertinamente todas as políticas de saúde, de ensino, de cultura, de ambiente, de agricultura, de justiça, de tudo o que meta ministro; diga-se que, muitas vezes com carradas de razão, mas nunca com um ínfimo acto de contrição, como se nada tivessem a ver com isso.


Se nos dizem que o défice vai ser controlado, outros, com ares inferiores de gente superior, (o inverso também é verdadeiro), afirmam que tal obsessão só nos asfixia e faz estagnar.

 

Se, este ano, ardeu mais um hectare de floresta, caiu mais uma ponte, morreu mais uma pessoa na estrada, ruiu mais uma casa, transbordou mais um rio, vozes comprometidas que deviam abafar-se e juntar bem claro o seu lamento, gritam aos ventos, sem escrúpulos nem ponta de remorso, que tudo resulta das políticas actuais a que é preciso mudar o rumo, pedindo a decapitação da gente a quem, pelo voto, confiamos, por uns tempos, a governação.

 

No ensino, desde os mais virginais aspirantes a caloiros aos estudantes perpétuos, (os cabulões relapsos e os de cérebro mais empedernido), toda esta gente, colheita pré e pós “vintage”, de humor tristonho de tão coçado, protesta e quer ditar as suas próprias leis.

 

Divulgam os seus manifestos em rolos de papel higiénico de uma ou mais folhas, todas elas em branco, sem palavras nem ideias, onde, apenas no ténue picotado, os mais sensatos e sagazes conseguem descortinar o vazio que vai naquelas mentes.


Os que, como eu, durante tanto tempo ouviram, a medo e em surdina, falar em Liberdade, tinham de ter um cuidado extremo com as suas piadas inocentes, limitando a sua audácia a, uma vez por festa, dizer umas larachas revisteiras, trazendo para a rua não mais que colheres de pau, penicos esmaltados e tachos de alumínio, tudo lascado e cheio de amolgadelas.

 

Naqueles obscuros tempos, o papel higiénico, que de higiénico nada tinha e, justiça seja feita, nem de higiénico se arvorava, era considerado um agente subversivo, potencial difusor da cultura, com as suas letras e figurinhas, lidas e apreciadas, recatadamente, na posição de sentado.

 

Era artesanalmente confeccionado em casa, redimensionado a partir de folhas de jornais antigos, cortadas com a faca da cozinha, em rectângulos de formato equivalente ao actual A5 que, depois de enfiadas num esfiapado cordel de embrulho, eram penduradas num gancho espetado na parede para serem lidos, um a um, ao ritmo intestinal de cada conspirador.


Hoje, os descontentes amadores de qualquer ramo da contestação fecham portas a cadeado, bloqueiam pontes, cortam estradas e vias-férreas, vociferam aleivosias megafónicas, insultam insolentemente velhos e novos, apupam juízes, achincalham ministros, borram paredes e pintam indecentemente a manta.

 

Os profissionais, esses organizam cerimónias de carácter a puxar para o fúnebre, essencialmente fiteiras para televisão ver, e transportam, com arriscada antecedência, aos beijos repenicados e abraços bem batidos, os amigos amortalhados em pano onde caíram nódoas das chamadas difíceis, que só o próprio e os seus mais chegados confidentes sabem se são ou não de sair.


Quase ninguém ignora, e muito menos os tais profissionais organizados, que vegetam pelos tribunais milhares de processos bolorentos, à espera não sabemos de quê nem de quem, anos e anos amontoados de qualquer forma, num desalinho confrangedor que chega a fazê-los desaparecer, toda a gente sabe que por causas nem sempre naturais.

 

Se lhes convém, sem se lhes crescer um só milímetro ao nariz, vêm dizer-nos, sem qualquer disfarce na desfaçatez e para que as coisas não pareçam ser o que são, que a justiça funciona! Fico radiante.


Pergunto-lhes embevecido: em que lugar vamos neste numeroso pelotão?


Por amor de Zeus, ao menos desta, não me venham com aquela de que, nisto de justiça, vamos maratonas à frente de todos, inclusive dos gregos. Só se for porque, sendo ela cega, esses todos se enganaram no caminho.

 

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